Capítulo 6
Virando a página
Após a convalescença, o assistente de pastor mudou completamente o seu comportamento. Suas atitudes já não demonstravam mais aquela ambição anterior que o impulsionava a criar situações ilegais, sempre visando obter lucros as custa dos incautos. Passou a orar com fé e determinação. Sua única fraqueza continuava sendo a paixão por Sueli. Vinha pedindo com fé e determinação para que Deus o fizesse esquecer aquela mulher maravilhosa. Por ela, mudaria toda a sua conduta. Ficaria igual ao amigo e sua Verônica, banhado pela energia positiva do pensamento de Phil Bosmans: “quando os indivíduos, pelo amor, se tornam de novo seres humanos, abre-se o céu sobre a Terra”.
Certa noite teve um sonho muito inspirador. Uma luz intensa, muito brilhante, iluminava todo o seu quarto. Essa aura transmitia uma paz celestial. Parecia que seu corpo estava banhado por óleos perfumados e levitava a aproximadamente 30 centímetros do chão. Confessava os seus pecados, como se estivesse conversando diretamente com Deus. Ao mesmo tempo em que rememorava sua extensa folha corrida, recriminava suas ações passadas.
− Oh meu Senhor! Sou um homem desprezível que só queria saber do meu bem estar, sem me importar com os outros. Meus pecados são grandes e eu não sou digno de seu perdão. Sou um covarde e tenho muito medo. Nos momentos de aflição, só penso em dar no pé. Fugir me afastar dos conflitos, das conspirações, dos tumultos. Só ao lado de Olegário me sinto um pouco mais seguro. Desejo me afastar do Demônio, pois sei que ele se aproveita das minhas fraquezas e me assola com propostas de traição. Por favor, meu Senhor, me fortaleça, me dê coragem, me engrandeça com suas preciosas bênçãos. Faça do meu coração um santuário, onde floresçam apenas bondade e amor. Dê-me forças para que eu possa enfrentar o poder maligno que se instalou nessa comunidade.
A oração que fazia agora tinha trechos dos cultos passados, os quais acompanhou durante meses displicentemente, só para não desagradar ao pastor. Durante os últimos dias, Santelmo vinha orando com fé e perseverança ao acordar e ao ir deitar. Ainda sonhando, ouviu uma voz forte, porém em tom suave, que lhe falou:
− Santelmo Deus ouviu suas orações e você está perdoado de todos os seus pecados. Ele percebeu em seu coração a sinceridade e o arrependimento. Sabemos que você está imbuído de não mais transgredir e quer deixar de lado o ser desprezível e covarde que sempre foi. Sua essência agora é a de um homem de bem, bom e leal. A prova disso foi a sua recusa à proposta maligna de Lúcifer, manifestada no corpo do pecador Moloque, que tentou lhe contaminar com o mal. Não tema mais nada! O Diabo é um anjo caído invejoso e perdido. Quando Deus criou o mundo, reuniu sua corte e perguntou onde deveria se esconder para que os homens o procurassem por sua livre e espontânea vontade. Lúcifer, o portador da luz material, do progresso, do dinheiro e das coisas fáceis, sugeriu que o esconderijo ficasse no coração de cada um, pois lá nunca o encontrariam, e ele seria o senhor da mente. Os conflitos mentais que assolam os humanos são provocados pelo Demônio, na disputa com Deus pela conquista das almas. É uma batalha milenar e você mostrou o seu valor ao não aceitar fazer parte da falange de Satanás. Sua situação com a mulher de Bodinho será resolvida. Por enquanto, mantenha distância carnal da pobre Sueli. E nunca se esqueça: Deus habita o seu coração.
O assistente do pastor estava maravilhado com o sonho. Seu corpo estava todo iluminado e ele se sentia feliz como nunca havia se sentindo em toda a sua vida terrena. Não queria que aquele momento mágico terminasse nunca mais. O anjo continuou com sua voz potente e suas doces palavras:
− Santelmo! Moloque não consegue vencer Olegário e teme enfrentá-lo, principalmente em público, pois sabe da possibilidade de ser exorcizado por seu amigo. O Demônio não quer largar o corpo desse infeliz, e agora vai te deixar em paz, percebendo a sua força e fé em Nosso Senhor. De hoje em diante, sempre que você invocar a Deus na sua luta contra as possessões demoníacas, será atendido. Sua alma está restaurada. Seu coração agora vibra na sintonia de só fazer o bem. O Diabo fica ainda mais furioso com cada alma que não consegue aprisionar no mundo terreno. Quando você e Olegário trapaceavam e depois se arrependiam, o demo tentava de todas as maneiras suprimir esse sentimento. Lembra quando dormiste em baixo da mangueira, lá em Puxaré? Pois é, o seu pensamento era de tristeza por estar indo praticar uma armação mentirosa naquele povo simplório, o qual recebeu vocês com tanta festa e carinho. Você não queria cumprir aquela missão e eu fui enviado por Deus para te fazer adormecer. Era o momento de seu amigo obter uma grande vitória contra as forças do mal. A fé daquela população contribuiu para a derrota do maligno. As curas e exorcismos obtidos por Olegário passaram a ser verdadeiras e ele percebeu a mudança do poder divino atuando entre vocês. A força da fé é incomensurável! Santelmo, não caminhe mais na direção das coisas mundanas, lute junto com o seu amigo contra as forças do mal. Vocês serão vitoriosos!
Santelmo acordou com a sensação que seu sonho era real. Sentiu uma disposição jovial em pleno estado de alegria. Ficou durante alguns minutos refletindo sobre o seu sonho e chegou à conclusão de que havia recebido uma mensagem divina, onde o anjo era o emissário de Nosso Senhor. Ao chegar ao refeitório para tomar o seu café da manhã encontrou Olegário, Moisés e mais cinco fiéis, três mulheres e dois homens, entre elas a bela Sueli. Foi logo dizendo:
Bom dia, amados irmãos! Hoje tive um sonho onde um anjo me trouxe uma mensagem de Deus e quero nesse momento repassar para vocês o conhecimento das coisas que entendi dessa magnífica experiência. Pequei inúmeras vezes. Fiz muita coisa errada e prejudiquei diversas pessoas. Depois das estripulias ficava arrependido e angustiado pelos meus atos. Sempre dei pouca importância para a fé e as orações. Não tinha estímulo para trilhar o caminho do bem, mas sempre me sentia muito mal após praticar os meus golpes e trambiques. Chegou ao ponto de Satanás penetrar por diversas brechas que deixei na minha pobre vida. Se aproveitando das minhas fraquezas o Demônio tentou, por diversas vezes, me levar para o lado de suas legiões. Me queria como aliado...
Todos ouviam o assistente do pastor com atenção. O relato soava como um desabafo sincero, vindo do fundo da alma. Santelmo discursava com fervor. Sua face estava avermelhada e seus olhos marejados. Sua voz saia com leves tremores. Tudo isso criava um cenário de pregação. Sueli verteu em lágrimas. Parecia que o orador estava tomado pela chama do Espírito Santo.
− Cheguei bem próximo da perdição, mas Deus não permitiu a minha queda final! O espírito do Senhor veio até a minha morada e restaurou minha alma vagante. Ele me concedeu o perdão por todos os meus pecados. Fui resgatado de um lugar tenebroso, bem próximo ao núcleo do efêmero poder de Satanás. Onde estive é um lugar tenebroso e difícil de escapar. Consegui vencer essa etapa por ter pedido socorro a Deus. Ele me estendeu sua mão generosa. Enviou um anjo para me resgatar de ser consumido pelo fogo eterno da luxúria, do poder material, da ganância e da perdição sexual. Esse estado de espírito demoníaco acaba com as virtudes humanas, triturando a alma até que ela seja totalmente envolvida pelo fogo dos infernos. Lá queimam todas as coisas ruins do mundo. É ali que a maldade é alimentada pela combustão das almas perdidas. O anjo mensageiro falou que só habitam esse mundo dos horrores os homens que se entregam aos encantos de Lúcifer. Aqueles que são enganados pela riqueza fácil, pelas belezas mundanas e pelas maldades que atormentam a civilização humana. Fui despertado de um pesadelo onde os meus sonhos eram alimentados por cobiça e trapaças. Deus é maravilhoso! Ele perdoa todo aquele que demonstrar arrependimento em seu coração e se dispor a praticar o bem para com o próximo. Portanto, amados irmãos, devemos sempre edificar as obras divinas e não permitir que ninguém venha destruir esse propósito. Principalmente esse templo sagrado que é a nossa igreja, que esse tal Moloque, por sinal o nome lhe cai muito bem, quer incendiar. Vamos perseverar em nossas orações, pois Deus está nos ouvindo e virá em nosso socorro assim que for acionado por todos nós. Mostraremos a esse Demônio que o nosso Deus é infinitamente mais poderoso que esse cão imundo conhecido por esses vários e terríveis nomes desgraçados.
O orador falava como se estivesse no púlpito. Olegário se sentiu orgulhoso e muito feliz em ver o amigo transbordando de fé e emoção. Os presentes reconheceram nas palavras proferidas a verdade de uma realidade que os envolvia na Mata Sete. Sueli sentiu uma paz celestial invadir seu coração. Estava apaixonadamente envolvida por aquele homem que entrou na sua vida para tapar a lacuna da solidão do seu marido encarcerado. Uma nova vida se descortinava para todos que tivessem Deus em seus corações e mentes. O pastor se aproximou do amigo e lhe deu um forte e emocionado abraço. Sueli também abraçou Santelmo com carinho e veneração.
Estava terminando o prazo ameaçador que Moloque havia dado para o pastor abandonar a igreja ou se aliar ao seu bando. O marginal não apareceu para cumprir a promessa. O segundo dia transcorreu tranquilo e sereno. Mas todos estavam tensos. Olegário, Santelmo e Moisés oravam diariamente, manhã, tarde e noite, junto com os inúmeros fiéis que integravam aquela família evangélica. Foram dias de vigília e louvores de aclamação a Deus.
Durante esse período, duas casas foram incendiadas pelos homens de Moloque, sendo as famílias acolhidas pelo pastor na sede da sua congregação. Alguns moradores estavam aterrorizados com as ações do chefe do tráfico na Mata Sete. O incêndio deixou-os ainda mais apavorados. Essa era a tática do bandido: disseminar o terror, na tentativa de dispersar os fiéis dos cultos, pois as pessoas achavam que suas residências estariam mais seguras com a presença deles.
Os bandidos mandaram recados para que os moradores ficassem em suas casas. A ameaça estava bem clara: a casa que fosse encontrada vazia seria incendiada. A jogada era evitar que os fiéis frequentassem os cultos. O bando estava sedento de sangue. Queriam ver as residências incendiadas e, de preferência, com os moradores dentro, pois descobriram que estavam se revezando na defesa do lar. Enquanto uns ficavam tomando conta do patrimônio, outros iam para a igreja, participar das vigílias de orações, na tentativa de bloquear a promessa nefasta de Moloque em queimar o templo do Senhor.
O pastor havia deixado bem claro que, enquanto na casa do Senhor estivessem fiéis orando, os bandidos não teriam como incendiar o local. Mais uma noite chegou e com ela um silêncio tenebroso, que irradiava em toda a comunidade uma energia de pavor para aqueles que não acreditavam nas palavras do representante de Deus. Em uma das ruas próximas ao templo, seis homens armados com fuzis caminhavam, dois deles com tochas acesas. Preparavam-se para colocar fogo em mais casas. Quando se aproximaram do alvo escolhido, um grito de mulher desesperado se fez ouvir: “não façam isso, pelo amor de Deus! Tenho quatro crianças aqui comigo.” Um berreiro agora preenchia o ar. Os bandidos davam gargalhadas sinistras e cercavam o casebre. Quando iam despejar a gasolina ao redor do imóvel, uma rajada de tiros atingiu os elementos que seguravam as tochas, que desabaram mortinhos da Silva. Os demais responderam ao fogo cruzado com suas armas potentes, mas logo desistiram da resistência e debandaram em desabalada carreira.
Moloque estava irado. Dois dos seus melhores capangas foram mortos no ataque surpresa. "Quem era o responsável por aquilo?” Era a pergunta que não queria calar e ficava martelando no seu cérebro. Convocou todos os integrantes da sua gangue para se reunirem no galpão da Rua Sete. Disse em alto e bom som que iria dar uma lição inesquecível naquela comunidade. A ordem era incendiar 20 casas de uma só vez. Cinco por rua. De imediato seus homens passaram aos preparativos da empreitada. Estavam todos eufóricos. Eles queriam ver literalmente o circo pegar fogo. Quando tudo estava preparado e o chefão iniciava as instruções finais, novamente foram pegos de surpresa em um ataque ainda mais feroz. Rajadas e pipocar de tiros de grosso calibre explodiram pela entrada do galpão, pelos fundos e do teto. Foi um pandemônio.
O combate foi mais violento e duradouro do que o primeiro. No calor da noite, as rajadas dos fuzis iluminavam como relâmpagos o negrume do galpão, após todas as lâmpadas terem sido atingidas por disparos da turma atacante. Moloque gritava desesperadamente, tentando por alguma ordem no seu bando, que atirava para todos os lados, pois não tinham idéia de quem os atacava. Após meia hora de intenso tiroteio, o diabólico chefão vislumbrou, através do reflexo de luzes vindas de fora, a figura de Bodinho próximo a uma janela, equipado com um fuzil M-16.
− Ei Bodinho! Vou te entregar a favela cara. Nós não precisamos lutar! Sempre estivemos do mesmo lado e você continua o mesmo: sempre aprontando suas diabruras. Faço um trato contigo. Que tal você reassumir seus negócios na Mata Sete sem precisar dar mais um tiro? Proponho uma trégua agora para discutirmos a questão.
Uma rajada de tiros foi disparada em direção a Moloque. Em seguida se fez ouvir a voz de Bodinho: “Só existe um trato que posso fazer com você, cão imundo! Suma da favela com os seus homens imediatamente. Deixe as famílias em paz e não volte nunca mais aqui, se não quiser morrer.”
Moloque deu uma gargalhada nervosa e soltou: “o que eu desejo, Bodinho, é muito fácil! Você está sozinho e não tem condições de enfrentar o meu exército. Chegou a hora da sua partida... Mas se você concordar com a minha proposta, eu posso poupar a sua vida miserável. É simples! Basta se livrar de Olegário e do seu assistente de merda e me deixar destruir a igreja que você mandou erguer nessa favela. Prometa-me isso e eu vou embora com a minha turma e te deixo voltar ao comando do tráfico na Mata Sete.
− Você está enganado, Moloque safado. Eu não estou só nessa empreitada, e meus fiéis seguidores são mais fortes que os seus homens. Não preciso fazer tratos contigo, pois já tenho uma aliança com Deus. Se você não sair da favela agora vou continuar eliminando seus diabinhos de bosta, como acabei de fazer com os quatro de hoje. A cada dia vou diminuir o seu bando de capetas. É bom que você saiba que não estou de volta ao crime. Fugi da cadeia para defender o meu pastor e lutar contra você e sua legião demônios com as mesmas armas: “dente por dente, olho por olho”.
O marginal ficou uma arara com a resposta de Bodinho. Seus olhos faiscavam de raiva e ódio. Em vez de responder com palavras, o desgraçado disparou o seu fuzil em direção ao ex-bandido, que prontamente respondeu no mesmo tom, só que obtendo um melhor resultado: atingiu um dos homens de Moloque nas pernas. O cara caiu uivando de dor e pedindo socorro aos comparsas. O chefão sacou sua pistola 45 da cintura e disparou à queima roupa na cabeça do infeliz e mandou essa: “o bundão que se deixar atingir por esse paspalhão vai ter o mesmo fim. Mas aquele que conseguir matar esse pulha vai colocar as mãos numa bolada do cacete, além de comandar os meus negócios na Mata Sete. Quem se habilita?”.
Bodinho sabia que o safado não iria desistir com facilidade do seu intento. Como conhecia muito bem a região, tinha a certeza de que iria dar muito trabalho para o facínora. Tinha como meta proteger a comunidade, evitando matanças e as ações criminosas dos incêndios. Sabia que só deveria atacar para defender os moradores inocentes da favela. Deu o toque de retirada. Com ele estavam mais três companheiros. Os quatro saíram tão sorrateiramente como surgiram.
As informações sobre o ocorrido chegaram até Olegário. Este ficou arrasado. Pensava com os seus botões: “uma pena Bodinho ter fugido da prisão para retomar os seus negócios na Mata Sete. Essa contenda não vai acabar bem. Muito sangue ainda vai rolar...”
Novamente o pavor tomou conta da comunidade. Muitas famílias, mesmo não tendo suas casas incendiadas, foram pedir abrigo na igreja. A rotina era a mesma: durante o dia tudo transcorria dentro da normalidade, mas quando a noite caía à insegurança tomava conta dos sentimentos dos moradores da Mata Sete. Nessas horas, os homens de Moloque percorriam as vielas e becos da favela disparando a esmo. Era um salvem-se quem puder!
O mais apavorado de todos era Santelmo. Com Bodinho solto, as coisas iriam ficar esquisitas para o seu lado. Sueli também estava preocupada. Os dois combinaram de não mais se encontrar nos enlaces amorosos. Agora só se viam publicamente e de preferência na igreja.
Os bandidos também estavam apavorados, pois tinham a sensação que estavam sendo observados e que a hora deles partirem dessa para melhor não tardava. Já haviam transcorrido três dias após a última refrega entre Bodinho e o cão imundo. A ordem do Capeta era para incendiarem o maior número possível de residências. Os marginais se preparavam para por fogo em uma casa onde estavam três crianças, entre as faixas de 5 a 12 anos. Suas tochas já haviam sido acessas e as garrafas pet de dois litros e meio tinham sido preparadas com estopas no gargalo. Dessa vez tomaram a precaução de colocar seguranças em torno dos incendiários. Andavam com cuidado, olhando para todos os lados, vasculhando cada canto do caminho percorrido...
A explosão de uma granada tirou o verniz de autoconfiança do bando. Em seguida, o espocar das rajadas de fuzis tomou conta do ambiente. Quatro bandidos caíram mortos e dois ficaram gravemente feridos. Três conseguiram fugir do local e partiram para bem longe, pois não queriam enfrentar a fúria do chefe. Mas infelizmente um dos fiéis escudeiros do seguidor de Olegário também partiu dessa para melhor. Na semana seguinte tudo ficou calmo na Mata Sete. Nenhum ataque e nada de casas incendiadas. As investidas de Bodinho e seus aliados desarticularam temporariamente o bando de Moloque. O cara havia subestimado o ex-chefe do tráfico na comunidade.
O momento era de recompor as forças e preparar uma emboscada para o bandido regenerado. Moloque estava recolhido, bolando uma forma de pegar o justiceiro em cheio. Ele só atacava para defender a população, ou seja, quando as casas estavam para serem incendiadas. Era muito previsível. “Mas deixa estar... Vou preparar um bote e pegar esse traíra numa calça justa.”
A guerra era desproporcional. Moloque tinha mais de 40 homens sob o seu comando, enquanto Bodinho contava agora com apenas dois companheiros. O ex-bandido tinha a seu favor o profundo conhecimento da região, que comandará no passado. Isso fazia com que os três justiceiros levassem uma ligeira vantagem contra o bando do Demônio. Nas duas semanas seguintes ao último ataque, o trio acabou com a vida de mais dois homens do Diabo.
No encontro seguinte, os dois amigos de Bodinho foram mortos em uma emboscada. Os marginais fingiram que iriam incendiar a Igreja da Reconstrução de Vidas para Deus, mas deixaram uns 20 homens escondidos na retaguarda. Quando foram derramar a gasolina ao redor da construção os três mosqueteiros entraram em ação. Com isso, a turma da retaguarda pode descobrir de onde partiam os tiros. Acertaram mortalmente os companheiros de Bodinho, que também acabou ferido na refrega. O admirador do pastor conseguiu escapar, deixando um rastro de sangue na fuga, o que foi comemorado por Moloque e seus capangas com rajadas de fuzis para o alto, alguns deles com balas traçantes, aquelas que iluminam o negrume da noite quando são disparadas. Até foguetes de sinalização foram usados na fuzarca.
O traficante cantava vitória e a população da Mata Sete voltou a entrar em desespero. Sem o anjo vingador, as coisas iam piorar muito na favela. A ordem do chefão era para o seu bando revistar cada canto da comunidade na tentativa de encontrarem Bodinho ou o que restou dele. Deixou bem claro: “quem estiver dando cobertura para esse traidor filho da puta terá um fim pior do que o dele. Os microondas serão ligados na pressão. Mas antes vou torturar bem devagarzinho esse desgraçado...”.
Manhã do dia seguinte, um dia chuvoso e com temperatura baixa parecia combinar com o espírito dos moradores. Moisés procurou Olegário para se aconselhar: “pastor! Estou com um problemão. Bodinho está escondido em minha casa. Os homens de Moloque vasculham toda a comunidade, e se o pegarem na minha residência acabam com todos os meus familiares. Não sei o que fazer.”
O pastor perguntou sobre o estado de saúde do ex-companheiro de prisão. Foi informado que era coisa grave. O cara tinha sido ferido no ombro por uma bala de fuzil que atravessou a omoplata e perdera muito sangue, inspirando cuidados médicos com urgência. Moisés não queria entregar o ex-bandido para Moloque, mas também temia por sua família. Esse dilema o atormentou pela noite afora. Além do mais, tinha outro agravante: Bodinho era um fugitivo da lei... Agora suplicava por uma saída ao seu líder espiritual.
Olegário sugeriu que orassem de mãos dadas. Quem também estava presente na cena era Santelmo. Os três deram as mãos e iniciaram a reza conduzida pelo pastor. Ao terminarem, o companheiro do ex-golpista colocou luz na questão: “vamos buscá-lo! O irmão Ari tem um caminhão caçamba que podemos pedir emprestado. Ele trabalha para as Casas Bahia e nós podemos fingir a retirada de um móvel danificado e saimos com Bodinho enrolado na proteção daqueles plásticos de embalagem. O que vocês acham?”
“Ótima ideia, Saltelmo! Você está iluminado. Vamos imediatamente conversar com o irmão Ari”, disse Olegário empolgado. Moisés retrucou seco: “não! Nada disso! Vocês não podem ser vistos circulando nas proximidades da casa dele. Vão acabar chamando a atenção dos homens do Moloque. Deixem isso por minha conta. Vou pedir ajuda ao caminhoneiro. Vocês ficam aqui organizando tudo para a chegada de Bodinho. Acho que temos que convencê-lo de se entregar a polícia.”
“Você está com a razão, Moisés. Aleluia, Senhor! Meus irmãos estão iluminados.” O pastor levantava às mãos para o céu e fechava os olhos. Em seu íntimo, pedia desculpas a Deus por todas as traquinagens praticadas contra o bom e fiel irmão. Lágrimas de arrependimento chegaram a rolar por sua face, a qual também estampava um leve sorriso de agradecimento ao Altíssimo por todas as bênçãos e proteção.
* Estória de Jeronimo Guimarães Filho, adaptada e copidescada por mim.

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