Capítulo 5
A ficha começa a cair
Na manhã do dia seguinte procuraram por Moisés que detalhou a história da invasão do morro por traficantes rivais. Os caras chegaram por volta de 2 horas após o culto da profecia e acabaram com Cabeleira e seus homens, conforme o pastor havia previsto. Foi mesmo um banho de sangue. Os quatro bandidos que pediram para sair da favela sobreviveram. Mas a ação dos novos donos do pedaço foi cruel para com os parentes e amigos dos antigos marginais. Andaram invadindo residências e o comércio local, depredando instalações, mobiliário e espancando as pessoas. O terror estava de volta à Mata Sete.
Olegário pediu para a moto que fazia o serviço de som andar divulgando na comunidade que naquela noite haveria um culto na igreja. Na hora marcada, às 7 da noite, ninguém compareceu, nem mesmo Moisés. O clima de guerra havia deixado os fiéis apavorados e ninguém se atreveu a sair de casa. Por volta das 22 horas Moisés apareceu esbaforido e com expressão amedrontada estampada na face. Contou que os bandidos ameaçaram os moradores para que não comparecessem ao culto. Uma família que tentou ir à igreja teve a sua casa incendiada e agora estavam chorando diante das cinzas do que em outro momento fora a residência deles.
O pastor solicitou que Moisés convidasse a família agredida para se instalar nas dependências da igreja. Encarregou Santelmo de tomar providências para que a casa destruída pelo fogo fosse reconstruída. Decidiu fazer um culto na manhã do domingo e tratou de preparar uma baita divulgação na localidade. Passou os dias que antecederam a data marcada visitando as famílias dos fiéis dizendo que Deus aguardava a presença delas para poderem lutar contra o mal e que a missão deles era a de garantirem a paz na Mata Sete.
No dia marcado apareceram poucas pessoas, mas o pastor gostou, pois chegou a temer pela igreja vazia mais uma vez. Ao iniciar a oração Olegário notou um reboliço na parte dos fundos do templo. Estavam chegando os novos donos do pedaço, com suas caras amarradas se aproximavam do púlpito. Todos se afastavam para os lados enquanto os marginais iam lentamente ao encontro do pastor, que continuou a sua preleção:
− Senhor misericordioso perdoai com tua bondade àqueles que com suas transgressões fizeram as mães chorarem por seus filhos queridos; órfãos chorarem pela perda de seus amados pais; parentes dilacerados pela dor da perda de seus entes queridos. Ó Pai misericordioso, lava a alma sofrida daqueles que cometeram pecados e afasta de seus pensamentos e ações a serventia diabólica do mal. Perdoe também as faltas graves dos que se foram desse mundo de meu Deus e console o coração de seus familiares, derramando o seu bálsamo da paz... Meus irmãos, Deus todo poderoso é o nosso criador e é tão fácil e prazeroso seguir seus mandamentos. Morreram nove pessoas brutalmente assassinadas em nossa comunidade. Foi uma perda inestimável para estas sofridas famílias, mas também temos que celebrar e agradecer ao Nosso Senhor as quatro vidas que foram poupadas porque acreditaram na palavra divina e se afastaram da Mata Sete. O aviso foi dado e muitos que hoje estão aqui nesse culto testemunharam que a rebeldia e arrogância contra os desígnios de Deus nos levam a derrota e a morte... Foi o que aconteceu com aqueles que não quiseram escutar as palavras vindas do altíssimo e hoje não estão mais entre nós. Quando o sangue é derramado à ação é do Diabo. A dor é promovida pelo maligno. A tristeza pertence ao reino de Satanás. Tudo aquilo que não presta e nos faz sofrer vem das profundezas do inferno. O tinhoso quer enganar o homem a todo o momento, sugerindo falsas vitórias, iludindo as pessoas com conquistas frugais, mas retirando em breve a luxúria e o contentamento, para aplicar o suplício e a dor infinda. Não esqueçam jamais: o mal será presenteado com o mal...
Durante o sermão o pastor enfatizou a importância de se trabalhar a harmonia e a paz na comunidade. Enalteceu a postura das pessoas que não tinham envolvimento com o crime e que os criminosos iriam acertar as contas com a justiça dos homens e a divina, essa sim muito mais vigorosa do que a terrena. Lembrou aos presentes: “aqueles que se atreverem a mexer com os filhos do Senhor terão como recompensa o castigo dos céus”. Cantando louvores finalizou o culto. Santelmo estava desconfortável. Olhou para Sueli, que estava sentada no banco ao lado e pensou: “não devo mais continuar tendo um caso. Tenho que resistir a essa tentação. Sou louco por essa mulher, mas sei que isso não é certo e ainda vai me trazer sérios problemas...”. Enquanto as pessoas se retiravam os bandidos se aproximaram do pastor. Um dos membros ficou cara a cara com o servo de Deus e com um sorriso irônico estampado na face disse: “Então você é o famoso pastor do Bodinho... Até que você não cheira mal... Tenho a impressão que nós vamos nos dar muito bem. Tomei conhecimento que o amigo preso é que mandou construir tudo isso aqui... Um toque: quem é amigo do bode é meu inimigo...”
− Qual é o seu nome?
− Me chamam de Moloque...
− Pois é seu Moloque, Bodinho construiu todo esse complexo para Deus após ter abandonado o crime.
O bandido deu uma sonora gargalhada debochada e mandou.
− Aquele pilantra nunca vai largar as coisas erradas. Sempre irá viver do tráfico e das jogadas sujas. Pau que nasce torto morre torto... A propósito seu Olegário que tal parar com as firulas e ir direto ao assunto que me trás aqui: vou lhe dar uma parte da grana que entrar nos meus negócios para que você lave tudo aqui nesse lance de igreja e ajuda comunitária. Tu vai ganhar bastante dinheiro e manter tuas ovelhas direitinhas no caminho certo para encher ainda mais o cofrinho com o din-din desses otários...
− Seu Moloque... É bem verdade que durante algum tempo eu me aproveitei da ingenuidade desse povo e da fé de quem ama a Deus, mas há um bom tempo eu atendi o chamado do meu Senhor e só com Ele faço as minhas alianças. Sou um servo de Deus e Ele já me perdoou pelos inúmeros erros do passado. Não vou me desviar do caminho da salvação. Trate de lavar o seu dinheiro com outras pessoas. Não serei nada político com as suas jogadas, mas serei seu amigo se o senhor quiser se submeter aos desígnios de Deus...
O criminoso encarava o pastor com ódio e muita raiva. Estava prestes a esbofetear o servo do Senhor, mas controlou-se e falou:
− Abre o olho pastor! Você vai dar muito trabalho para o seu Deus e ele não vai conseguir te salvar. Nessa favela não há espaço para quem não se aliar a mim. Anote aí: dou 7 dias para você e sua tropa se mandarem daqui... Quem manda no pedaço agora sou eu. Se não partir por bem vai partir por mal. Vou colocar fogo na sua igreja, com quem estiver dentro. A não ser que você feche uma aliança comigo. Se fizer isso vai poder continuar com suas trapaças, enganando esse povo otário junto com o seu amigo vigarista.
Dito isso Moloque deu as costas e partiu gingando cesteiro com o seu bando. Santelmo apavorado soltou: “vamos sair imediatamente da favela. Esse Moloque é muito pior do que o finado Cabeleira. Sinto que ele vai nos trazer grandes problemas se ficarmos por aqui.”
− Não Santelmo! Deus me enviou seu anjo e ordenou que eu continuasse a fazer o meu trabalho... Tenho analisado essa situação e as demais em nossa vida. Muitas pessoas foram salvas por nossa intervenção. Veja o exemplo recente dos quatro homens do bando de Cabeleira que atenderam o meu sonho de inspiração divina. Eles estão vivos graças à mensagem do Nosso Senhor. Foi Deus que me inspirou, através do sonho, a proferir aquela pregação. Nós pensávamos que estávamos salvando apenas a nossa pele, mas acabamos salvando quatro vidas. E poderiam ter sido mais, caso o restante do grupo tivesse seguido as instruções divinas. Por linhas tortas nós fomos usados para que o propósito Dele se realizasse com os homens que permaneceram entre nós. Não podemos abandonar esse povo sofrido da Mata Sete. Deus nos colocou aqui para ajudá-los. Nossa intenção era nos aproveitarmos da ingenuidade dessa gente. Brincarmos com a fé dos crentes... Reflita bem amigo: Deus tem nos dado a oportunidade de fazermos o bem e tudo isso para perdoar os nossos pecados, que não são poucos e nem pequenos... Tenho fé nesse Deus maravilhoso de bondade e amor. Tudo vai dar certo e Ele não nos abandonará... Você lembra quantas pessoas saíram dos cultos se sentindo curadas? E as que estavam possuídas e foram exorcizadas? Você me garantiu que não estava mais contratando os artistas.
− É verdade Olegário... Eu até cheguei a imaginar que você estava fazendo o meu trabalho e te confesso que pensei que era pão durismo seu. Para te dar uma lição e te deixar em maus lençóis parei de chamar os artistas em diversos cultos. Pensava que você iria ter problemas e daí notasse a importância do meu trabalho no esquema. Mesmo assim as curas e exorcismos continuaram ocorrendo na maior eficiência. Fiquei bolado. Também cheguei a duvidar da verdade... Entrei numa que você estivesse contratando diretamente as pessoas para fazerem as encenações. O tempo passou e acabei me acostumando com os shows... Amigo você acha que Deus também está me usando?
− Tenho certeza que sim Santelmo. Nós nunca conseguimos enganar a Deus em nossas trapaças. O tempo todo estávamos sendo instrumentos do Senhor para fazer o bem, mesmo por caminhos errados. Ele percebeu que nossos corações se enchiam de alegria quando o bem predominava em nossas desastradas ações na batalha contra o mal. Dessa forma tem nos dado a chance de salvar nossa alma. Não vamos largar esta oportunidade Santelmo! Você não vai abandonar a Sueli nesse momento difícil?
− Meu amigo, eu também acredito em Deus, mas tenho muito medo de morrer. O tal Moloque não está para brincadeira e deixou bem claro que vai incendiar a nossa igreja mesmo que dentro dela estejam os fiéis. Te suplico: vamos embora o quanto antes! Temos um bom dinheiro em caixa e podemos recomeçar o nosso trabalho missionário em outro local. Continuaremos seguindo as ordens do Senhor e praticando o bem. Deixaremos de lado a nossa vida de vigaristas. É melhor um covarde vivo do que um herói morto... Sueli sabe se virar sozinha. É esperta e tem a proteção do marido, mesmo este estando preso...
− Não Santelmo! Vou ficar e lutar para dar apoio aos que necessitam de ajuda espiritual. Mas você pode ir amigo. Eu cuidarei de sua amada... Pegue o quanto de dinheiro for necessário para o seu recomeço. Você me ajudou muito e sempre foi um companheiro fiel, apesar de ter parado de contratar os atores para as encenações e não ter me avisado. Vivemos grandes momentos juntos. Vou sentir a sua falta, mas não quero te fazer sofrer achando que irá morrer nas mãos desse sanguinário Moloque...
− Amigo eu não vou fazer isso: deixar você só em um momento tão importante e perigoso. É a segunda vez que passo perrengue ao seu lado. A primeira foi quando da sua prisão. Não vou conseguir viver se te acontecer algo de grave. Gosto de você como se fosse meu irmão de sangue. Aliás, mais do que irmão, como se fosse meu pai. Tudo o que aprendi para me virar nessa vida foi contigo. Embora eu esteja morrendo de medo vou ficar ao teu lado, como sempre fiquei. E essa história da Sueli está me deixando louco. Como você soube? Se isso cair nos ouvidos errados serei um homem morto...
− Obrigado Santelmo! Se meditares com sinceridade nas provas que já venceste, nos problemas que já atravessaste, nas dores que já esqueceste e nos obstáculos que, muitas vezes, já contornaste, sem maior esforço de tua parte reconhecerás que o amparo de Deus esteve e estará contigo em todos os momentos... Você pode até não saber por que, mas acabou ajudando mais a Sueli do que imagina. Deus está a par de tudo e é ele que te protege amigo. Assim como consegui recuperar a minha história com Verônica você encontrará uma saída digna para esse relacionamento com o seu amor.
Bodinho estava arrasado na penitenciária. Não tanto pela perda do império criminoso na Mata Sete, até porque não tinha mais vontade de continuar administrando o tráfico na região. Sua maior frustração foi saber que o pastor profetizará o banho de sangue na favela e Cabeleira não atendeu a solicitação divina. O cara e parte de seus homens ainda fizeram pouco caso do mestre Olegário. O bandido também ficou sabendo do ultimato do novo chefe da área. Ficou desesperado, pois sabia da fama de Moloque e tinha certeza que o marginal iria cumprir a promessa de queimar a Igreja da Reconstrução de Vidas para Deus. Embora estivesse convertido para o bem, sentia a responsabilidade de lutar contra o mal com as suas velhas armas do passado. Não iria permitir que o coisa ruim acabasse com o seu sonho...
Moloque implantou o maior clima de terror na comunidade. Ordenou um toque de recolher para os moradores e comerciantes a partir das 23 horas. Ninguém poderia circular pela favela após o horário determinado pelo marginal. A permissão era dada as pessoas que vinham comprar droga. Para os traficantes e viciados conhecidos o ir e vir estava garantido. Um morador da área que chegou do trabalho depois da hora pré-estabelecida foi levado à presença do chefão que o tirou para Cristo: amarrado pelos pés e mãos em quatro estacas na praça principal da favela.
O rapaz ainda tentou argumentar: “senhor Moloque eu trabalho distante e o meu horário de saída nunca é respeitado pelo meu patrão. Eu juro que não quis desrespeitar as suas ordens...” O que Moloque respondeu: “não tem desculpa! Você vai pro sacrifício. Vai servir de exemplo para todos...” O infeliz foi colocado no chão, com braços e pernas abertos e bem esticados.
Os moradores da redondeza assistiam a tudo escondidos dentro de suas casas, através das frestas das portas e janelas. Estavam tomados por uma angústia entre o medo e o cumprimento do dever cristão de solidariedade em ajudar aquele pobre infeliz. Conheciam o rapaz e a sua família. Em determinado momento o segundo sentimento falou mais forte no pastor Moisés que, também acompanhava de sua residência a cena dantesca, se viu compelido a defender o jovem. Não podia ficar impassível diante de tanta barbaridade. Foi buscar ajuda se esgueirando pelos becos da favela e conseguiu chegar até a igreja onde pediu socorro a Olegário e Santelmo. Decidiram que o ajudante iria chamar a polícia, enquanto os pastores retornariam a cena do crime.
“Olegário, você endoidou de vez? Esqueceu quem é esse Moloque? Ele vai matar o rapaz e vocês dois se forem até lá. Não faça isso meu amigo. Eu te imploro! Vamos os três chamar os policiais do destacamento.” O pastor estava decidido e retrucou: “não Santelmo, faça o que te pedi. Vai buscar ajuda enquanto eu e Moisés vamos tentar chegar a tempo de salvar a vida desse rapaz”.
O amigo viu que não tinha jeito e saiu rumo ao destacamento da PM que ficava na entrada da favela, próximo ao supermercado. Olegário pensou melhor e pediu a Moisés para ficar na igreja, pois temia por uma reação violenta de Moloque e seu bando. Mas o pastor substituto corajosamente decidiu que iria junto, pois sabia como guiar o pastor pelos becos e vielas da comunidade, possibilitando uma chegada mais rápida ao destino. E assim foi feito.
Moloque e seus homens estavam em torno da vítima. A demora em sacrificar o jovem que jazia esticado por quatro estacas se deu em decorrência da espera pela chegada de um carro com sistema de sonorização. Não havia ninguém observando a cena de perto, mas os soldados do mal sabiam que os moradores espreitavam tudo dentro de suas casas. Esbravejando alto para todos ouvirem, através do sistema de som, o chefão falou:
− Esse cara estava circulando pela favela fora do horário determinado. Minha ordem era para ser cumprida por todos. Como ele ousou me desafiar, vai ser sangrado até a morte e depois colocarei fogo no seu corpo. Vai servir de exemplo. Quem manda na Mata Sete agora sou eu: Moloque! Qualquer pessoa que desacatar minhas ordens terá o mesmo destino: entenderam?!? Espero que a lição não seja esquecida por ninguém.
Fez-se um longo silêncio na localidade após a fala do chefão. Depois começaram a pipocar algumas gargalhadas dos integrantes do bando. As famílias assistiam a tudo entocadas em suas casas. A vítima passou a gritar, implorando por sua vida. Aquilo mais parecia um açoite na alma dos moradores, diante da impotência em poder ajudar um ser humano que implorava por socorro. Moloque deu a ordem para sagrarem o rapaz. Um dos homens sacou uma faca da cintura, daquelas do tipo do filme Rambo, e caminhou em direção do jovem.
Uma voz imperiosa tomou conta do ambiente: “pare já com isso!” Perplexo o bandido que empunhava a arma branca interrompeu a ação. “Ah! O pastorzinho resolveu sair da toca para salvar a sua ovelhinha. Você não tem jeito Olegário! E agora, como você vai fazer para salvar esse otário? Tá querendo dar trabalho para o teu Deus?
O pastor encarou com firmeza o marginal e falou: “na verdade fazer o bem não é trabalho para Deus, é alegria! Vencer o mal é obrigação e seus filhos se sentirão felizes.” Moloque deu uma tremenda gargalhada, no que foi seguido por seus homens. Sua fisionomia foi se modificando, seus olhos foram ficando vermelhos, as veias da face incharam, a pele foi ficando com um aspecto escamoso e as feições tomaram um aspecto diabólico.
− Pastor eu conheço toda a sua vida. Tu és um tremendo 171. Pensa que dessa vez vais me vencer? É bem verdade que você conseguiu muitas vezes me expulsar de outros corpos e até daquele velho em Puxaré. Mas agora a sua sorte não te faz companhia e dessa vez vou acabar com a tua vida. O corpo que habito agora está tomado definitivamente, assim como os dos demais integrantes do bando. Estão todos sob o meu comando e fazem parte da minha legião de Demônios. Você Olegário só têm duas alternativas: fazer uma aliança comigo. Ou prefere matar os corpos que habitamos atualmente? Caso você se decida pela primeira vou ficar muito contente e prometo lhe dar mais poder e riqueza do que você conseguiu até agora. Vou te fazer um dos meus súditos mais prestigiados no inferno.
Olegário se ajoelhou diante de Moloque. O nefasto sorriu e disse zombeteiro: “isso mesmo, se ajoelhe diante de mim e proclame aos quatro cantos da Terra que agora eu sou o seu senhor. Faça um juramento de lealdade diante de todos...” E continuou falando e falando: “... daqui para frente você irá realizar todos os meus desejos e eu lhe fortalecerei com um imenso poder. Você será um dos mais fortes aliados do meu reino. Diga bem alto para que todos escutem: Lúcifer é o meu protetor!”.
O pastor estava de cabeça baixa enquanto Moloque discursava e após a fala levantou a face e ergueu as mãos para o céu e bradou:
− O espírito do Senhor meu Deus está comigo. Ele me ungiu para vencer este Demônio. Só Deus é o rei do universo e foi Ele que me enviou seus anjos profetas para me protegerem. Você Satanás é odiado por todos que seguem o meu Senhor, o qual é amado e adorado pelo esplendor das graças que derrama sobre a humanidade. Deus engrandecerá a todos que lutarem contra o mal. Eu continuarei como servo no reino do meu Pai e com prazer repudio a oferta do Diabo de ser príncipe nesse reino de lama.
Os moradores, durante a fala do pastor, foram deixando suas casas orando e se aproximando de Olegário, que continuava ajoelhado com seus braços e cabeça estendidos em direção ao lindo céu estrelado e sem nuvens. As orações foram ficando cada vez mais altas. Moloque tentou disparar sua ira gritando para os seus homens atirarem, mas eles não ouviam nada. Alguns estavam com as mãos nos ouvidos e outros olhavam aparvalhados para o pastor que agora conduzia o culto. Parte da bandidagem acabou dando no pé, enquanto um pequeno número ficou estático, como se fossem zumbis petrificados, com os olhos esbugalhados, a boca entreaberta e os braços estendidos em direção ao representante de Deus. “Se permaneceis em minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Jo 8, 31-32. Após proferir estas palavras se levantou e foi ao encontro da vítima.
Moisés e Olegário soltaram as amarras que prendiam o jovem às estacas. Ele estava muito assustado, mas sem nenhum ferimento grave. Todos continuaram orando com fervor por mais ou menos uns 15 minutos. Foi quando chegou Santelmo acompanhado por duas patrulhas de PMs. A situação naquele momento era de tranqüilidade. A população passou a se cumprimentar com efusão. Todos estampavam na face um ar de alívio. Muitas pessoas choravam copiosamente. Alguns davam alegres gargalhadas com a vitória conquistada pelo pastor salvador. Havia um entendimento de que Olegário tinha vencido mais uma peleja com o Demônio. Desfrutavam da euforia de terem participado daquele momento mágico, pois fizeram parte de um combate do representante de Deus contra o maligno. Tinham a noção de que haviam alcançado um prêmio ao expulsarem o Diabo e seus seguidores através da fé no Pai. "Aleluia" era a palavra mais proferida, seguida de toda "Glória a Deus."
Mas Santelmo, que não havia participado da contenda, estava preocupado. Tinha a impressão de que Moloque ainda estava na favela, se escondendo em algum beco aguardando o momento certo para atacar novamente. Quando se viu só com o pastor soltou a tramela: “demos sorte mais uma vez! Pelo que você relatou Moloque conhecia o velho de Puxaré. Esse cara tá mandado e vai acabar matando a gente. Tá na hora de cairmos fora dessa comunidade.” Olegário respondeu com voz suave mais firme.
− Todo esse povo sempre viveu angustiado com a presença do mal. Levei tempo para entender o que está acontecendo, mas minha mente foi iluminada pelo Senhor. Antes era Dedé Macumba com Bodinho que estavam dominados por Satanás e faziam dessa favela um inferno, onde o império do mal predominava. Quando Deus me usou para transformar Bodinho em um guerreiro do bem e inclusive o inspirou a construir a nossa igreja, justamente onde a presença do Demônio imperava, este se enfureceu e tentou nos afastar da Mata Sete, nos enviando para um local distante, lá no interior do Mato Grosso. A intenção era nos deslumbrar e fazer com que nós ficássemos por lá. Satanás está em muitos lugares tentando obter vitórias contra o Nosso Senhor. Cada mal que ocorre contra o Homem ou a Natureza nos faz questionar se devemos mesmo ter fé no Altíssimo. Quando achamos que a fé nos abandonou temos que verificar se antes o nosso coração não se fechou para ela. É nesse momento que o Diabo tenta entrar pelas brechas da nossa dúvida. Eu tive muito medo de perder Verônica e as crianças, mas minha fé no Senhor os trouxe de volta. Hoje sou um homem realizado e muito feliz...
Santelmo balançava levemente a cabeça, dando pinta de não estar acreditando muito nas palavras do amigo, que continuou a preleção: “... entendo seu pavor, mas não tenho mais medo e sei que vou conseguir vencer e expulsar o Demônio dessa comunidade, pois essa é a vontade de Deus.” O auxiliar estava com o coração amargurado. Queria ter a fé e a coragem do amigo para continuar na batalha, mais temia Moloque com tanta intensidade que naquele momento só pensava em fugir dali e salvar a sua pobre vida. Para aliviar a sua consciência matutava...
− Olegário deve estar ficando louco... Já fiz de tudo para convencer esse cabra que é hora de largar essa favela e fugir para outro lugar, de preferência bem longe daqui... Começar tudo de novo em outro estado... Curtir a mulher e os filhos. Daqui a pouco Verônica dá no pinote outra vez... Ela não vai suportar essa pressão toda... Não terei culpa se algo de ruim acontecer com ele. Vou preparar as minhas malas e dar no pé enquanto é tempo. Gosto muito dele, mas gosto ainda mais da minha pele...
Santelmo colocou suas coisas no carro furtivamente, pois não queria que o amigo percebesse a sua ação de fuga. Justamente no momento crucial da vida dos dois, quando deveria ficar ao lado daquele que sempre o apoiou o pilantra ia dar no pé, sem ao menos tentar se livrar do mal. Foi se hospedar em um hotel duas estrelas, onde costumava ficar quando Olegário estava no xadrez. Já era conhecido na praça e a gerência foi logo providenciando os serviços do cliente antigo. Contataram uma casa noturna nas redondezas e solicitaram os préstimos de uma velha conhecida garota de programa do hóspede. Enquanto se banhava o ex-auxiliar de pastor pensava com os seus botões, lembrando os momentos vividos ao lado do amigo. Reconhecia que ele tinha descrito com detalhes, que mais tarde veio a se comprovar, a mensagem do anjo no sonho. O que ficava martelando na sua cabeça era aquela história de Deus ter ficado alegre de ver o bem triunfar contra o mal. Ao terminar a ducha resolveu ler algo na bíblia, a qual abriu a esmo e se deparou com a frase em Provérbios: “não deixes o teu amigo no momento da adversidade”.
Não conseguiu mais ler nada, pois foi atender o chamado da campainha que tocava. Deparou-se com uma linda e já conhecida morena que foi logo se enroscando em seu pescoço, fazendo carícias de tirar o fôlego. Esquivou-se suavemente da serpente e falou com docilidade: “deve estar havendo um engano. Não solicitei nenhum acompanhamento especial! Gostaria de ficar só. Estou com alguns problemas profissionais. Desculpa, mas tenho que te pedir para se retirar.” Pagou a mulher, acrescentou uma polpuda gorjeta e se despediu sem que a gostosa entendesse alguma coisa.
Não foi possível pregar os olhos naquela noite. Estava se sentindo um tremendo covarde, o pior dos homens... Seu tormento maior era por ter deixado Olegário naquela furada com Moloque. Ao amanhecer, mesmo antes do café, tomou a decisão de retornar a Mata Sete para pedir desculpas ao amigo e garantir que não fraquejaria mais. Virou correndo um café com leite e pão na chapa com manteiga enquanto refletia: o ser humano caminha quase sempre ao longo de precipícios. Sua meta principal deve ser a manutenção do equilíbrio... E isso estava faltando no momento... Colocou as malas no carro e tocou de volta para a favela. Enquanto se dirigia para a comunidade ia refletindo: “quero chegar cedo e pegar o pastor antes do café da manhã na casa de orações. Certamente conseguiremos arranjar um jeito de se livrar do traficante. Ele não vai conseguir incendiar a nossa igreja”.
Ao chegar encontrou um membro da Congregação que lhe informou o paradeiro de Moisés e Olegário, que haviam saído para visitar outra igreja nas proximidades. Santelmo resolveu desfazer as malas e tomar um bom banho para relaxar. Cantarolava alegre, pois estava feliz com o retorno. Sabia que o amigo iria ficar muito contente com a novidade. Estava aliviado, nem dava sinais de que havia passado uma noite inteira sem pregar os olhos. Ao sair do banheiro da suíte tomou um susto danado: deu de cara com Moloque sentado na beirada da cama, portando um fuzil AK-47, totalmente cromado. O bandido estava com uma expressão nada amistosa. Mesmo morrendo de medo conseguiu pronunciar: “aqui é a casa do Senhor...”.
− Pare com essa palhaçada! Você não é pastor. Não seja idiota de pensar que tens os mesmos poderes do seu amigo. Olegário acredita que tem a proteção de Deus. Ele tem fé e por isso está conseguindo ter algum pequeno progresso contra as minhas legiões, mas quando eu incendiar tudo isso aqui e deixá-lo carbonizado, essa gente toda que o segue vai mudar de lado e passar a me venerar. O momento está chegando e você tem a última oportunidade de ser um dos homens mais poderosos de São Paulo. Muito dinheiro, maravilhosas mulheres, prestígio e tudo mais que quiser de conforto e luxúria. Basta me ajudar a ganhar a confiança do pastor. Faça-o entender que vocês devem continuar aplicando seus golpes e ludibriando as pessoas, ganhando muito dinheiro nas costas desses otários que acreditam no poder divino. Garanto: o meu poder é bem maior e Olegário vai voltar a ser meu servo e junto contigo vai continuar produzindo conquistas para o meu reinado...
Santelmo, em um arroubo de coragem, que ele até hoje não sabe explicar como conseguiu aquela façanha, mandou na lata do chefão: “senhor Moloque, se tens tanto poder e é até mais poderoso do que Deus, porque necessita da minha humilde colaboração para vencer Olegário, um simples mortal?”
− Já te disse mais de uma vez ajudante do pastor de araque, só existe um encanto nesse Deus de vocês que enfraquece minhas ações: a fé dos fiéis através da força nas orações... Mas os homens não vivem o tempo todo rezando e muito menos mantendo o espírito alerta. Nos momentos de fraqueza eu penetro nas mentes desavisadas e domino toda a situação. O ser humano adora dinheiro fácil, orgias, trapaças, traições... Dão muita atenção à raiva, cultivam o ódio, o ciúme e esbanjam a inveja. Agindo assim esses seres ficam muito próximo da minha corte...
“Entendi senhor Moloque: tenho que trair meu amigo trabalhando para enfraquecer a fé dele em Deus.” O chefão sorriu e disse alegremente: “isso mesmo Santelmo! Lembras quando atuavam juntos, antes da prisão do seu parceiro, e faziam todas aquelas coisas maravilhosas, enganando as pessoas...” Deu uma boa gargalhada e continuou: “... você pensa que Deus é bonzinho? Pois saiba que Ele fez Olegário ir parar na cadeia e traçou essa rota de colisão comigo. Veja só Santelmo! Seu pastor conseguiu me expulsar dos corpos de pessoas fracas, mas não vai se sair vitorioso a vida toda...” Mais gargalhadas do diabólico traficante que continuou o seu discurso ensandecido...
− Olegário não conseguirá me vencer... Meus legionários estão cada vez mais fortes. Adoram as orgias com drogas e bebidas que promovo quase todos os dias. Estou me sentindo cada vez mais forte... Vou praticar umas chacinas para enfraquecer a fé dos fiéis. Vou matar inocentes a esmo para gerar tumulto e confusão na cabeça das pessoas. Praticar o bem é difícil, fazer o mal e fácil... Os seres humanos precisam esquecer Deus para poderem fazer parte do meu reino. Lembre-se Santelmo: em meu reino sempre haverá banquetes e bacanais com lindas mulheres, muita comida, muita bebida e muita droga... Além disso, todos os meus súditos irão nadar no dinheiro, desfrutarem de maravilhosas vadias depravadas, podendo fazer o mal a quem lhe desagradar...
“Senhor Moloque! Não quero saber de lutar contra a sua corte, quero apenas viver em paz. Não quero trair meu amigo! Por que não nos deixa e vai agir em outro lugar? Existem tantas comunidades violentas nesse mundo de Nosso Senhor...” Moloque cortou a fala de Santelmo com raiva: “Seu vigarista arrependido de uma figa! Você se nega a ajudar-me? Vou te dar uma lição.” Moloque agarrou a gola do paletó do assistente de pastor com a mão esquerda e com a direita sacou um punhal. O sujeito se desvencilhou do bandido que ficou segurando a peça do vestuário vazia com cara de tacho. Correu como se fosse um velocista se embrenhando nos becos da favela que conhecia bem. O marginal saiu em sua perseguição disparando tiros do seu AK 47.
O corredor já estava sem fôlego e não tinha mais forças para prosseguir. Suas pernas estavam bambeando e na sua mente só aparecia um pensamento: “estou frito! Vou morrer...” Desabou no chão. Foi quando percebeu que tinha sido atingido por um tiro. Seu ombro sangrava. Sentiu que o fim havia chegado. Começou a orar e perdi perdão a Deus por tudo de errado que havia feito nessa vida mundana. Em sua reza pediu para Deus continuar fortalecendo seu grande amigo na luta contra o mal.
Moloque ao perceber que sua presa havia ido ao chão parou de correr e se aproximou a passos lentos e sacou da cintura a sua pistola Ponto 380 e apontou para a cabeça da vítima. Abriu o maior sorriso ao chegar ao lado do corpo ofegante do fugitivo. Nesse momento ouviu-se a voz do pastor: “Santelmo! Santelmo! Onde está você?” Ao ouvir o chamado o bandido abandonou o local e fugiu por um beco próximo. O assistente de pastor continuava caído e com as forças esgotadas. O amigo se aproximou e de joelhos afagou a cabeça do parceiro: “o que aconteceu contigo? Fugia de quem?”
Relatou para Olegário os detalhes da fuga para o hotel e do retorno à favela. Não esqueceu de contar sobre as propostas feitas por Moloque. “Amigo fique calmo. Você está muito agitado. Vou te levar para um hospital. Você precisa ser medicado. Está perdendo muito sangue.” Santelmo foi internado no hospital Sírio Libanês. Estava fora de perigo. O tiro atravessou o ombro. Teve que passar por uma cirurgia, mas o seu estado de saúde estava estável. O pastor orou e agradeceu muito a Deus pela proteção derramada sobre o parceiro. Garantiu ao amigo que iria expulsar o Demônio do corpo de Moloque. Santelmo tentou aconselhar o pastor a não fazer tal investida, pois para ele o bandido era o próprio Satã e queria conquistá-lo para as suas hordas ou exterminá-lo de vez. O respondeu citando Jo 11, 50. “Não compreendeis que é melhor para nós que morra um só homem pelo povo para que não pereça a nação toda?”.
Olegário não se conformava com a idéia de que não conseguiria exorcizar Moloque. Andava por toda a favela na tentativa de provocar um encontro com o bandido que surpreendentemente evitava toda forma de confronto com o pastor.
Numa certa manhã de um domingo chuvoso, com aquela garoa chatinha que insiste em cair na cidade de São Paulo, deixando o dia cinza, feio e triste, Moisés chegou à igreja com uma novidade: a imprensa estava noticiando com grande estardalhaço a fuga de Bodinho da penitenciária, juntamente com mais três comparsas dos velhos tempos de bandidagem. Foi uma escapada sem violência: os quatro saíram andando tranquilamente pela porta da frente do presídio. Agora a polícia de São Paulo estava mobilizada para capturar os espertinhos.
O pastor ficou triste com a notícia e chegou a comentar com Moisés e Santelmo que não esperava por esta recaída de Bodinho e seu retorno ao crime. “Para o Diabo isso é uma grande vitória meus amigos... Temo por uma guerra sangrenta aqui na comunidade, em torno do controle do tráfico. Vamos ter muito trabalho. Devemos começar imediatamente uma vigília de orações na Mata Sete...”.
Elevaram suas preces pedindo proteção para a população local. Queriam acabar com a onda de violência que se anunciava. Nada de conflitos armados, mortes e torturas. O passado deveria ficar no passado... Santelmo orou também na intenção da proteção divina para ele e sua amada. Com o marido fora das grades Sueli estaria em perigo. “Grande perigo! Como iriam sair daquela enrascada?”. Era o pensamento recorrente do assistente de pastor.
* Estória de Jeronimo Guimarães Filho, adaptada e copidescada por mim.

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