O diabo e o exorcista trapaceiro* - capítulo 3


Capítulo 3

Puxaré, uma cidade sob o domínio do mal

Os meses se passaram na maior tranquilidade na Mata Sete. Foi um período de calmaria e muitos festejos em torno do pastor, o homem de Deus que trouxe paz e união aos moradores da comunidade. Até que um dia Moisés levou ao conhecimento de Olegário que um jovem morador foi maltratado e ameaçado pelos homens de Cabeleira. Lá foi o emissário do Senhor conversar com o marginal. Empregou toda a sua lábia e habilidade, mas sem deixar de usar a sua autoridade espiritual. Explicou ao bandido que todos deveriam ser mais amáveis com a população da favela, que já tinha sofrido muito nas mãos de Dedé Macumba, “pois Deus estava observando a atitude de todos e a mão Dele é pesada quando cobra um pecador por seus erros". Cabeleira arregalou os olhos demonstrando medo, o que fez com que o pastor ganhasse mais força no seu discurso. Lembrando-se de uma frase do escritor Phil Bosmans, saiu-se com essa: "quem é ambicioso e reclama demais, atrai nuvens densas sobre si", e arrematou com um pensamento de Dom Luciano Mendes de Almeida: "a paz é fruto da justiça e exige não só a cessação de hostilidades, mas a cura das feridas que sangram nos corações". O traficante pensava com os seus botões: "esse pastor fala cada coisa bonita. Não entendo tudo, mas sei que ele tem o dom das palavras e que elas são fortes e cortantes como uma navalha..." Enquanto o cara estava absorto em seus pensamentos, Olegário colocou a mão sobre a cabeça do bandido e fez uma oração pedindo a Deus o perdão para aquela alma sofrida, assim como também para os seus comandados.

Ao deixar a casa onde se encontrava, o pastor conseguiu a promessa de que não haveria piores tratos à população. Cabeleira reuniu os seus homens e ordenou que a partir daquele dia se algum morador da favela se queixasse de ter sido maltratado por eles, as coisas iam ficar feias para o autor. Cada vez mais crescia o respeito da comunidade por Olegário e Santelmo, que eram admirados por onde passavam. O pastor era visto como o grande protetor e conselheiro da Mata Sete. Sua igreja ia de vento em popa. Os fiéis se revezavam na limpeza e manutenção do templo. Foi formado um grupo jovem que realizava diversos eventos sociais e esportivos. Também foi criada uma banda musical, para animar ainda mais os cultos. Os rapazes e moças tocavam tão bem que chegaram a gravar um CD que também era vendido nas apresentações em outras igrejas e shows evangélicos pelo estado de São Paulo e região Sudeste. Desenvolveram encontros para aconselhamento de casais e também foi instituída uma organização com membros da "Igreja da Reconstrução de Vidas para Deus" para divulgar a palavra do Senhor em outras localidades. Os convites eram tantos que o pastor teve que preparar o irmão Moisés para substituí-lo nos momentos em que se apresentava em outros lugares. Santelmo pensou: “esse meu amigo é fogo! Já está despachando o pobre Moisés para poder pegar a gostosa da mulher dele... Essa Marta é uma formosura. Ô neguinha bunduda...”.

Olegário se tornou uma celebridade no mundo evangélico. Já estavam discutindo a possibilidade de comprarem um horário em uma emissora de televisão, pois nas rádios já tinham três programas, um diário em AM e dois semanais em FM. Nas visitas que faziam a outras igrejas, cobravam ofertas e doações ao final de cada culto, “que se destinavam a reconstruir vidas para Deus”. Em todos os lugares por onde passavam eram bem recebidos e atendidos em seus pedidos. Todo mundo queria participar de um encontro com o pastor exorcista, o homem de Deus que recuperava almas do Demônio, curava enfermos e fazia milagres de todas as espécies. Seus cultos eram verdadeiros shows, onde travava batalhas incríveis com o Diabo na frente dos fiéis. Em um desses eventos, com uma igreja lotada, uma mulher possuída por seres do mal entrou em confronto com o pastor. O Diabo se negava a abandonar o corpo da pobre infeliz, que gritava histericamente: “tu não vais me tirar desse corpo. Vou te vencer pastor, de meia tigela. Esta alma já é minha. Eu já ganhei...” Por quase 2 horas Olegário pelejava para retirar o coisa ruim da pobre mulher. Já tinha feito várias orações, além de recitar Salmos e versículos do livro sagrado. Já estava perdendo a paciência quando foi tomado de uma força estranha e berrou furioso o nome do Senhor por três vezes: “Valha-me Deus!!!” Como em um passe de mágica, a mulher se aquietou, após estremecer e cair se debatendo no chão. Aos poucos, foi se recompondo, e amparada por irmãos que auxiliavam nas orações e súplicas, voltou ao normal. Marta, que acompanhava o exorcismo, muito aflita, logo acorreu para o pastor com um copo d’água geladinho e uma toalha de mão para enxugar a face banhada de suor do religioso. O assistente amigo pensou com seus botões; “essa já está no papo...”

Após a estafante intervenção de Olegário com a louca da mulher possuída, este chamou Santelmo para uma conversa ao pé do ouvido.

 Fala com as pessoas que você está contratando que elas estão passando dos limites, me obrigando a gastar muita energia, gritando feito doido varrido. Amanhã teremos outra apresentação e não sei como vou me sair, estou ficando esgotado. Diga a estes artistas que o Diabo tem que fugir no máximo em 5 minutos. É tempo suficiente para convencermos os participantes. Os seus contratados estão me dando um trabalho do cão. Estou me cansando muito nesses eventos. Peça a eles para serem mais rápidos nas suas encenações. A mulher de hoje foi fantástica! Deu um verdadeiro show. Se eu não soubesse que era uma armação, iria acreditar que de fato ela estava possuída pelo demo.

O parceiro ouvia a tudo com os olhos arregalados e a cara vermelha qual pimentão.

 Amigo, eu não contratei ninguém. Aliás, já estava para falar isso contigo: há muitos cultos que não contrato pessoas para encenarem milagres ou exorcismo. Sinto que está ocorrendo algo misterioso nesses encontros. Tenho pra mim que você está mesmo tocado pelo Senhor, operando curas e descarregos. Eu acredito que hoje nós estivemos diante do Diabo, encarnado no corpo daquela infeliz.

Olegário parecia estar perturbado com as palavras do cúmplice de traquinagens. “Bem, se você diz que não contratou, alguém está fazendo isso, o que me deixa muito preocupado, pois essa pessoa está brincando conosco e deve saber dos nossos planos... Isso é preocupante... Mas estou arrasado de cansaço e quero tirar um bom sono restaurador. Amanhã discutimos o assunto. Boa noite, amigo.” Santelmo emplacou uma conversa sobre Marta para relaxar a tensão. “E aí! A mulher de Moisés está caidinha por você...” O pastor tentou repreender o amigo, mas, no fundo, estava mesmo interessado naquela bunda monumental. Tanto tempo na tranca... Aquela negra atiçava as suas fantasias mais eróticas. “Valha-me Deus! A gostosa é mulher de um fiel...” O amigo gargalhava com o corpo inteiro, ficando quase roxo de tanto rir; parecia mais uma gelatina trepidante. Foram dormir mais leves naquela noite.

A fama do pastor exorcista e homem dos milagres já ultrapassava as fronteiras do estado de São Paulo. Já estava sendo convidado para atuar na região sul e nordeste do país, além dos diversos municípios da região sudeste, principalmente em Minas Gerais, onde fazia muito sucesso com suas caravanas em prol da “Reconstrução de Vidas para Deus”. Santelmo tratava da agenda e do recolhimento dos ganhos e só marcava um compromisso fora de São Paulo quando a proposta era realmente tentadora. Por menos de 20 mil reais ele mandava um DVD com os melhores momentos das curas e exorcismos do amigo. Teve a ideia de contratar uma produtora de TV para filmar os cultos e pregações e de lá editar a fina flor dos acontecimentos. Mas o que ele mais curtia fazer era correr a sacola das doações, agora elas eram feitas de veludo vermelho com bordados dourados na boca. Os DVDs eram vendidos a 100 pratas cada. A firma estava bombando, foi quando receberam um chamado de uma cidade no interior do Mato Grosso.

Puxaré estava em polvorosa com a ocorrência de alguns fatos estranhos. A cidade era pequena, por volta de 23 mil habitantes, mas tinha uma boa arrecadação de impostos, pois era forte produtora de soja e gado de corte, em virtude do seu solo fértil, além de ter um grande frigorífico, o maior do estado, e uma baita transportadora de cargas. Não tinha miséria no local, pois não faltava emprego para os seus habitantes. Mais ou menos 80% da população era constituída por evangélicos, o que proporcionou a eleição do prefeito Gonzaga, pastor presidente da maior igreja da região. Homem de bom caráter, sério no trato com as pessoas, de temperamento dócil e de vida muito simples. O político nunca tinha enfrentado problemas na sua administração e já estava no seu quarto mandato a frente do município. Foi quando começaram a acontecer os incêndios inexplicáveis, o que vinha deixando os moradores da cidade apavorados. Eram focos de fogo que surgiam nas lavouras ou no comércio local.

No primeiro momento o prefeito reuniu todas as igrejas da região, que englobava cinco municípios, e oraram por 3 dias em vigília e jejum, mas não conseguiram acabar com os estranhos focos de incêndio, sendo que após a tentativa dos pastores e fiéis, a situação piorou. Os focos começaram a surgir também nas residências. Dois pastores de cidades vizinhas afirmavam que o causador de toda aquela confusão era um morador de Puxaré, que já havia passado pelos municípios em que eles residiam. O indivíduo em questão era um homem solitário, de meia idade, devia beirar aos 66 anos, que vivia em um casebre nos arrabaldes, distante uns 4 quilômetros do centro da cidade. Era considerado por todos como um cara esquisitão. Não gostava de crianças, não era de conversa e nem tinha mulher e parentes. Apareceu em Puxaré já fazia uns 6 anos e desde então se ouvia rumores, aqui e ali, a respeito de fatos esquisitos, todos ligados a problemas com fogo.

A figura não dava trabalho para ninguém. Cultivava sua pequena horta, caçava uma vez a outra pelas matas ao redor da cidade e pescava quase toda semana no rio que cortava Puxaré. Mas corria solto na boca do povo que em noites de lua cheia, o cara virava lobisomem. Segundo algumas pessoas, o cidadão fora visto gargalhando e dançando próximo aos incêndios, uns até afirmavam que o viram sapatear sobre as cinzas. Outros diziam que o homem enlouquecera de vez ao perder toda a sua família em um incêndio no estado vizinho do Mato Grosso do Sul. Mas a corrente que estava ganhando mais adeptos era de que o solitário realmente se transformava em lobisomem. Nessa hora, a força da cultura popular fala mais forte.

Uma nova tentativa de retirar o mal que se apossara daquele corpo foi feita por um grupo de pastores e seus fiéis seguidores. Foram ao encontro do lobo solitário umas 12 pessoas. Elas se dirigiram para o casebre do ermitão, um sala e quarto formado por cozinha, banheiro e um grande cômodo. Ao chegarem encontraram o sujeito deitado tranquilamente em uma rede no interior da casa. O grupo de fiéis, liderados pelos dois pastores que já tinham tido contato com o incendiário, adentrou no barraco com muita cautela. Quando se encontravam todos reunidos em torno da rede onde o homem parecia dormir o sonho dos anjos e já iam iniciar as orações, eis que o cara solta uma gargalhada estridente, ao mesmo tempo em que objetos como panelas, grafos, facas, tigelas e até um penico, voaram em direção aos evangélicos. Foi um Deus nos acuda dos Diabos. Todos saíram em disparada porta a fora, na maior debandada, estilo pernas pra que te quero. Dizem que uns chegaram a passar do centro da cidade numa carreira de fazer inveja aos melhores maratonistas.

A partir dessa ocorrência, o caso do lobisomem ganhou mais força e dimensão fora do Mato Grosso. Já era até assunto para os jornais e rádios locais. Dizem que até saiu matéria no principal jornal da capital e que repercutiu em São Paulo, Rio e Minas Gerais. O pior é que a situação estava ficando tensa nas igrejas. Alguns fiéis cobravam mais atitude por parte dos pastores. Queriam porque queriam expulsar o Demônio do corpo do lobo solitário. Mas cadê que os pregadores tinham coragem para se defrontarem com o incendiário e agora, arremessador de objetos voadores. Ananias, um evangélico fervoroso, nascido e criado em Puxaré e assessor do prefeito Gonzaga, estava preocupado com a rádio corredor na sede do governo municipal. Corria de boca em boca que o chefe do executivo estava morrendo de medo do lobisomem. O boato até tinha o seu fundo de verdade, ainda mais após o relato dos pastores fujões, que para limparem um pouco a barra, aumentaram, e muito, as proporções do acontecimento com os objetos voadores, nova tentativa vã de minorarem a desmoralização a que foram submetidos na região.

Ananias tinha parentes na Mata Sete e quase toda semana recebia cartas do primo Moisés, com quem foi criado na favela, relatando os feitos e milagres do pastor exorcista. Havia até recebido o tal DVD com os melhores momentos da vitória do bem contra o mal. O assessor do prefeito não titubeou, foi taxativo com o seu líder político: "o único homem no Brasil, capaz de enfrentar o Demônio de Puxaré é o pastor Olegário. Temos que contratá-lo imediatamente, senhor prefeito, para ele vir ao nosso município e acabar de vez com esse tormento que nos abate." Ananias também pensava em rever a apetitosa Marta e suas pernas de fechar o comércio... Gonzaga balançou a cabeça afirmativamente, embora, no fundo da sua alma não tinha esperança no exorcista. Mas a situação era deverás complicada e necessitava, com urgência, de uma solução. Era constrangedor para o presidente da Congregação Evangélica do Mato Grosso ter que importar um pastor para dar conta do recado. A população da cidade já cobrava uma ação espiritual do seu líder diante do lobisomem incendiário. Corria a solta o boato de que o pastor prefeito estava tremendo de medo do lobo solitário. Isso não era nada bom para o futuro político e religioso do chefe do executivo de Puxaré. Pensou: “o convite ao pastor exorcista deve minimizar o clamor popular, e assim ganharei mais tempo para resolver definitivamente a situação”.

No salão do Centro de Convenções da cidade, foi realizada uma solenidade para expor à população a tática de Ananias. Foi projetado, em um telão gigante, o DVD do pastor Olegário. Os participantes ficaram perplexos com o sucesso dos cultos e exorcismos, assim como as curas e milagres divulgados no projeto. Belo o trabalho de edição de Santelmo. Diante do exposto as quase 300 pessoas que estiveram presentes na exibição, incluindo cinco vereadores da base aliada (a Câmara Municipal de Puxaré era formada por nove parlamentares), foi aprovada por unanimidade a contratação do exorcista. Uma mulher, participante do grupo dos 12 evangélicos que foram até ao casebre do ermitão, em discurso inflamado, chegou a sugerir queimar o endemoniado em uma fogueira em praça pública, o que prontamente foi refutado pelo prefeito e seu estafe. Ficou decidido que Ananias viajaria imediatamente para São Paulo, em carro oficial, para contatar o pastor Olegário, tendo carta branca para decidir sobre todas as exigências que fossem feitas para se firmar um contrato de exorcismo, pois queriam se ver livre do lobisomem incendiário.

Moisés fez a apresentação do primo ao pastor e seu dileto companheiro de trambiques. Os dois ouviram com atenção ao relato do assessor da Prefeitura da pequena cidade do Mato Grosso. A narrativa de Ananias despertou a atenção dos estelionatários. Santelmo consultou a agenda, que estava lotada com diversas apresentações em igrejas de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Tentou se desculpar com o primo de Moisés, mas ficou engasgado quando o assessor jogou uma proposta no ar. Olegário também arregalou os olhos e franziu a testa suada. A euforia tomou conta dos espertalhões. Não era pouca coisa não. O pastor entrou no assunto e pediu para o amigo rever as datas e compromissos: “O caso requer cuidado e empenho. Lidar com o coisa ruim é perigoso, mas muito importante para vencermos o mal e livrarmos nossos irmãos do fogo do inferno. Vamos ajudar os moradores dessa pobre cidade, antes que eles sejam todos escravizados por Satanás”. Acabaram excluindo quatro apresentações, que tomariam dois finais de semana.

Na manhã do dia seguinte, enquanto Santelmo arrumava as malas, o parceiro dava as instruções: “amigo, estamos indo para uma cidade interiorana, de gente simples e que, geralmente, ficam muito impressionadas com os fenômenos sobrenaturais. Não acredito nessa palhaçada de lobisomem. Tenho certeza de que vamos ganhar muita grana nas costas desses incautos...” Santelmo só pensava nos lucros da operação enquanto Olegário continuava sua preleção: “esse cara deve ser louco, mas também deve gostar de dinheiro. Imagine alguém se transformando em lobo e nós colocando o cão para correr de volta para casa... Vamos fazer o maior sucesso!” À noite pegaram um avião para Cuiabá, onde dormiram para no dia seguinte rumar, no carro oficial do prefeito, para Puxaré, distante 260 quilômetros da capital.

Ao chegarem à área urbana de Puxaré, após 5 horas de viagem, pois tiveram que percorrer uns 70 quilômetros em estrada poeirenta e bem esburacada, notaram diversas faixas espalhadas, nas ruas e residências, contendo versículos da Bíblia e boas vindas ao ilustre visitante. Apesar do cansaço da jornada Olegário teve que enfrentar uma maratona de apresentações. Toda a elite da localidade queria apertar a mão do emissário de Deus, o homem que teve a coragem de enfrentar o coisa ruim em seu terreno. Na praça  matriz estava armado um grande palco, onde uma banda da região executava hinos evangélicos, inclusive alguns de autoria do famoso pastor exorcista, o que deixou os dois patifes contentes e satisfeitos. Uma pequena multidão se aglomerava em torno do palco, para ouvir as divinas palavras do santo homem.

O Prefeito sentia um alívio, logo transformado em alegria e pleno sorriso, com a transferência de responsabilidade no enfrentamento com o Demônio. Fez questão de discursar primeiro, em deferência à personalidade evangélica que visitava Puxaré pela primeira vez, garantindo a população que o capeta seria banido "de uma vez por todas" da cidade. Disse também que acompanharia Olegário nessa empreitada, pois não conseguiria lidar sozinho com tamanha força do mal. Enalteceu as qualidades do pastor recuperador de almas para Deus. Falou por aproximadamente 15 minutos, uma eternidade para o orador, já que costumava fazer seus pronunciamentos, em no máximo, 5 minutos. Mas, naquele final de tarde, se sentia diferente. Parecia estar tocado por uma energia especial. Ao lado do exorcista, estava mais confiante e amparado. O povo ovacionou Gonzaga com um longo aplauso e gritos de "Glória a Deus" e "Aleluia!!!"

Ao final do evento, o Prefeito insistiu com os ilustres visitantes para se hospedarem na sua residência, mas Olegário recusou o convite polidamente, pois queria demonstrar humildade, se hospedando no hotel mais simples da cidade. Lá só havia um, onde ficavam os caixeiros viajantes. Mas aceitou de bom grado o convite para ceiar na casa de Gonzaga. Ananias pegou os dois no hotel no início da noite e rumou para a casa do Prefeito. Foram recebidos pela esposa do chefe do Poder Executivo, filhos, secretários municipais, vereadores da base aliada e alguns funcionários comissionados da prefeitura. Tratados com toda a reverência e extrema cortesia, como se fossem autoridades públicas com destaque no cenário nacional recepcionados na sala de visitas da grande e confortável casa, foram apresentados a cada um dos convidados.

Durante o lauto jantar, incluindo iguarias da região preparadas com peixes de água doce, carne de porco e de boi, Gonzaga foi discorrendo sobre todos os fatos acontecidos relacionados com o lobo solitário que agora habitava a cidade que ele administrava. O destaque da narrativa foi a carreira que os pastores levaram ao tentarem exorcizar o ermitão. Olegário teve que se conter para não rir na cara dos anfitriões ao ouvir o relato das panelas, talheres e até um penico voador perseguindo o grupo de evangélicos, que em desabalada correria procurava um lugar seguro que servisse de abrigo. Para conter a gargalhada que já se anunciava, o pastor recuperador de almas para Deus perguntou ao Prefeito: “por que o eremita é tão temido pela população da região?” Gonzaga explicou, com todo o cuidado, em tom de voz baixo e cadenciado, que o homem em questão morava a mais ou menos 6 anos em Puxaré, sempre só. Enfatizou que o cara não era de conversar e que procurava poucas coisas no comércio local, pois vivia daquilo que plantava, caçava e pescava. Não era dado a bebedeiras e nem a arruaças. Disse também que corria o forte boato de que nas noites de lua cheia se transformava em lobisomem. Completou: “acredito que essas estórias possuem um fundo de verdade, pois estão muito ligadas a cultura local, as crendices e lendas regionais, mas após parte da população assistir o belo DVD que vocês produziram, já ouvi comentários de que o pobre homem está é possuído pelo Diabo.” Bela tacada, pensou o Prefeito, “assim jogo a responsabilidade para esses dois...” Era a política: cobra comendo cobra...

Ao final do jantar, Gonzaga, Ananias, Santelmo e Olegário foram para o escritório, bebericarem um licor caseiro de Jenipapo e fumarem bons charutos cubanos, pois como bons filhos de Deus, distantes do olhar repreensivo dos ardorosos fiéis, tinham lá as suas fraquezas humanas. Ficou combinado que na manhã seguinte os convidados iriam até o casebre pesquisar melhor o local e os hábitos do lobo solitário. O Prefeito, ao término da conversa, insistiu muito com a dupla paulista para se hospedarem em uma casa que lhe foi oferecida por um correligionário, localizada bem no centro da cidade, pois estava preocupado com a estadia das personalidades. Olegário ainda fez um doce, pois queria marcar a sua posição de homem simples e humilde, para assim ganhar mais confiança dos matutos, mas ao final cedeu, uma vez que o pardieiro onde estavam não podia ser considerado um hotel, perto daqueles que estava acostumado a frequentar quando viajavam pelo país. A preocupação de Gonzaga era reter o máximo possível o exorcista em Puxaré, para criar um clima sobrenatural nos encontros com o eremita malucão, por isso uma casa vinha bem a calhar.

O assessor do Prefeito levou a dupla de volta para o hotel. Durante o trajeto entabularam uma conversa que foi bater nos costados do primo de Ananias. Ficou sabendo que o cara era o terceiro nome na hierarquia da Reconstrução de Vidas para Deus e por isso tinha ficado em São Paulo gerindo os negócios da igreja que agora se expandia até para outros estados. O assessor estava triste, pois a gostosa da Marta não tinha ido. Chegou a ficar com uma pontinha de inveja do primo, que estava crescendo na organização religiosa e ainda tinha uma neguinha de bunda grande, a sua tara. Por mais que orasse, aquelas nádegas protuberantes invadiam seus pensamentos e o levavam a sonhar com lascivas carícias. Se via apertando forte aquelas coxas e mordendo aqueles nacos de carne tostada.

Ao deixar os ilustres visitantes no hotel ficou acertado que no dia seguinte, por volta das 17 horas, voltaria para pegar as personalidades e levá-las até a residência oferecida pelo amigo do Prefeito. Olegário combinou no final da tarde, pois queria dar uma volta pela cidade e conversar com as pessoas para obter maiores detalhes sobre o lobo solitário. No dia seguinte, o bater de pernas dos trambiqueiros rendeu bons papos e coletas de informações valiosas sobre o velho. Ouviram diversos relatos sobre os incêndios nas lavouras e as aparições do sinistro personagem dançando diante do fogo, cantando e gritando em um idioma desconhecido. Foram convidados por diversos moradores e comerciantes para almoçarem em suas residências. Tiveram que dar muitas desculpas, dizendo que seria uma indelicadeza aceitarem o convite de alguém e recusar todos os outros. Acabaram escolhendo um pequeno bar, afastado um pouco do centro da cidade, que fora indicado por Ananias no dia anterior.

Durante o saboroso almoço regional, composto por uma deliciosa comida caseira a base de peixe de água doce, Santelmo desabafou.

 Veja bem, Olegário, eu também quero atuar como pastor. Você me conhece bem e sabe que tenho lá os meus predicados. Estou me sentindo limitado e parece que você não tem mais a mesma confiança que depositava no parceiro de tantas e tantas jornadas. Sou um malandro experiente e já me liguei em tudo que você anda fazendo nos cultos. Esse negócio de tirar o diabo do corpo das pessoas é molinho. É tudo na base da autossugestão. Os possuídos na verdade estão autossugestionados e basta gritar, criando um clima de histeria coletiva, que os caras começam a tremer e espernear. A plateia entra no clima e acredita que de fato aqueles pobres coitados estão com o demônio no corpo. Daí você dá a voz de comando e convence a todos expulsarem a coisa ruim.

Olegário ouviu o amigo com atenção, mas sua voz interior apontava para algumas experiências onde não conseguia explicações para os fenômenos que ocorreram em suas sessões de descarrego. Como explicar a cura dos aleijados, dos cegos e das pessoas desenganadas pela medicina? Algo lhe dizia que muitas vezes estivera de fato duelando com o diabo. Verbalizou seus pensamentos para Santelmo, que fez cara de poucos amigos e mandou:

 Tudo bobagem. Você é um malandro escolado e sabe muito bem engambelar as pessoas. Agora mesmo está praticando comigo. Não caio nesse teu papinho meia tigela não. Sei bem a maestria com que você desenvolve suas ações. Eu te conheço de outros carnavais. Estou te pedindo para me deixar atuar da mesma maneira. Vamos aumentar os nossos lucros. Peço uma oportunidade para agir como pastor auxiliar e participar dos atos de exorcismo. Gostaria de começar já em grande estilo, te ajudando nesse caso do lobo solitário. Deixa comigo! Vou entrar na mente desse velho e dar um sacode no coitado. É tudo questão de psicologia. É como se fosse uma sessão de hipnose. Primeiro se coloca na cabeça do infeliz que ele está possuído e depois de alguns sacolejos e tremedeiras é só ordenar que ele volte ao normal.

O pastor não queria arranjar problemas com o parceiro, ainda mais naquele momento importante de suas vidas. Por outro lado se via impelido por uma força sobrenatural a ser honesto. Este era o seu dever: lutar contra o mal que invade o universo da alma. Com maestria e muita calma falou para Santelmo: “você terá outras oportunidades para mostrar tudo o que aprendeu, mas dessa vez pretendo ficar a frente dos trabalhos. Essas histórias dos incêndios são esquisitas. Vamos ter que formar uma bela parceria, só que preciso estar no comando para que nada fuja ao nosso controle. Mas vou te dar um papel de destaque nessa história”. Os dois ainda discutiram a questão por um bom par de horas, e ao final Santelmo arrefeceu e concordou que não era o momento preciso para ele atuar como pastor auxiliar.

Ao serem instalados na confortável casa, que possuía um belo jardim, com um lindo canteiro de rosas vermelhas, brancas e amarelas, a sós, Santelmo falou em tom jocoso: "vamos dar umas porradas nesse Diabo caipira e botá-lo para correr da cidade..." No exato momento em que pronunciava a frase uma forte ventania, que mais parecia um furacão californiano, fez com que portas e janelas ficassem escancaradas, após baterem diversas vezes com força nos batentes; um vento gelado se fez sentir. Parecia que um terremoto tinha tomado conta do lugar. Tudo estremecia em uma barulheira infernal. O pastor temeu que a casa fosse desabar e saiu correndo cambaleante para o jardim, gritando para o amigo fazer o mesmo, enquanto se atirava no canteiro das rosas, arranhando-se todo. Ficaram ainda mais espantados. Do lado de fora não corria nem uma brisa. Tudo estava calmo e quieto. Uma bela lua brilhava no céu de Puxaré.

Santelmo, ensimesmado, olhou para Olegário e comentou: “dentro da casa parecia que estava o maior vendaval e aqui fora está tudo na maior paz. Só esse calor infernal.” O amigo retrucou que achava o clima naquela região muito estranho. Para ele, deveria ter havido uma corrente momentânea de vento forte. Convidou o parceiro para entrar e dormir, descansar um pouco da viagem, pois o dia seguinte prometia novas aventuras, logo pela manhã. Ao retornarem ao interior da residência as portas e janelas fecharam-se abruptamente e outra corrente violenta de ar gelado envolveu ou dois, e como num passe de mágica tudo voltou ao normal. Cada um foi para o seu quarto, mas Santelmo não conseguia pegar no sono. Rolava na cama de um lado para o outro. Tentou se concentrar nos momentos tórridos vividos ao lado da exuberante Sueli... Não adiantou nada. Santelmo já vinha tendo um caso com a mulher de Bodinho já fazia alguns meses. Ainda não tinha tido a coragem de contar para o pastor. Aquela mulher tinha tomado conta do seu coração; ou seria da sua pobre alma? Não sabia ao certo; mas o seu corpo já pertencia totalmente àquela apetitosa e encantadora amante. Aquilo ainda ia dar em morte. Foi uma péssima ideia tentar envolver a mulata gostosa nos seus pensamentos noturnos. Chegou a ficar com falta de ar. Em certos momentos sentia um frio intenso, parecia que estava na serra de Petrópolis. Chegava a bater os dentes... Logo depois era acossado por uma onda de calor intenso. Não resistindo às mudanças bruscas de temperatura, resolveu procurar o amigo, que dormia tranquilamente, como se estivesse sonhando com os anjos.

Acorda Olegário, acorda!!! Está acontecendo alguma coisa muita estranha nessa casa e eu estou ficando cabreiro.” O amigo acordou de mau humor e tentou despachar logo o encosto, dizendo para a companheiro ter paciência e deixá-lo dormir em paz, pois tinham muito trabalho a ser feito no dia seguinte e necessitavam de uma boa noite de sono para reporem as energias. Recitou um pensamento de Maxwell Maltz para o assistente: “a vida está cheia de desafios que, se aproveitados de forma criativa, transformam-se em oportunidades.” Ao perceber que estava tudo normal no quarto do amigo, Santelmo pediu para ficar por ali e deitou na mesma cama. O clima no ambiente estava tranquilo, uma paz celestial, o sono veio rápido e foi restaurador. Foi acordado por Olegário na manhã seguinte, logo ao raiar do dia, recebendo ordens:

− Quero que você deixe tudo preparado. Procure contato com esse velho mais rápido que puder. Convença o picareta para fazer um acordo conosco. Ofereça uma boa grana. Pelo que o Prefeito falou é um cara humilde, sem dinheiro, que passa por necessidades. Acredito que uma boa oferta vai amolecer a alma do pobre diabo, que se deixará exorcizar sem problemas. Mas vá com cuidado, veja se realmente existe um clima para dobrar o figuraça, através das orientações de procedimento perante o povo que vai assistir ao espetáculo. São quase 6 horas, enquanto você procura o cara eu vou preparar a multidão para irmos, em romaria, ao casebre participar do exorcismo.

O pastor combinou com Santelmo que daria um bom espaço de tempo e que previa chegar ao casebre por volta das 16 horas. Os amigos se despediram com um forte abraço e foram cuidar das suas tarefas. Localizar o local da moradia do velho foi fácil, pois todo mundo na cidade estava a par dos acontecimentos. A casa ficava nos arredores do centro urbano, após uns quatro quilômetros por uma estradinha de terra que cortava um bosque. O ajudante do pastor caminhava calmamente naquela bela manhã ensolarada, apreciando os campos verdejantes e a mata do cerrado ao redor da estrada. Vez por outra passava uma pessoa ou um carro, a maioria utilitária, fazendo transporte de mercadorias dos agricultores da região. Parecia que estava vivendo um momento mágico. Seus devaneios o levaram de volta ao passado, a sua infância, exatamente no estágio em que ficou órfão e a vida se tornou muito difícil, acabando por levá-lo a tomar o caminho marginal e se tornar um vigarista. Durante as lembranças se sentiu culpado por ter lesado tantas pessoas na sua trajetória profissional. Já há algum tempo vinha tendo esse tipo de pensamento, onde o arrependimento tomava conta da sua mente. Naquele momento, em que se dirigia para o casebre do pobre velho, seu intuito era de articular uma forma de convencer o ancião a participar do show. Pensava em sugerir uma boa tremedeira, com direito a uma bela queda ao chão para iludir todo aquele povo que iria testemunhar o espetáculo. Nem ele e nem o pastor enganador deram por conta de que o dia era 6 de março, Dia de São Olegário, data em que o ex-Bispo de Barcelona e Arcebispo de Tarragona (Espanha) deixou a Terra rumo ao Céu no ano de 1137.

O assistente do pastor era bom no que fazia. Deixava tudo preparado para que o exorcista desse o seu show. Após as ardilosas apresentações era só passar a sacola e recolher o dinheiro da plateia que acreditava realmente no poder divino do exorcista. Mas naquela manhã Santelmo ficou triste ao lembrar que ultimamente a sua participação nos eventos tinha sido quase nula, pois não estava mais contratando nem dirigindo ninguém nos espetáculos. E o pior de tudo, o amigo nem desconfiava disso. Tentou afastar os pensamentos de desânimo da mente e se concentrar na tarefa que tinha pela frente. Agora se dirigia para um casebre onde iria convencer um pobre ancião a participar de um show de exorcismo. Tinha que corromper o velho para poderem enganar a população de Puxaré, libertando-a do Demônio. Voltou a pensar com pesar: um povo tão bom, humilde e acolhedor, que recebera a dupla de São Paulo de braços abertos... Uma pena ludibriá-los...

Continuava a sua caminhada filosófica quando avistou uma frondosa mangueira, distante uns 30 metros da estrada, repleta de frutos maduros, que exalavam um odor delicioso. Teve um desejo incontrolável de saborear uma manga. Olhou para o relógio e conferiu a hora. O seu Seiko marcava exatamente 10h35m. Tinha tempo de sobra para se esbaldar com as frutas. Subiu no galho mais baixo e catou três belas e suculentas mangas. Sentou-se no pé da árvore, bem acomodado, pegou seu canivete suíço e passou a descascar a primeira espada. Enquanto saboreava a fruta seus olhos esquadrinhavam o ambiente. Pensava com os seus botões: “que lugar maravilhoso. Que paisagem de encher os olhos. Que aroma fascinante. Que brisa agradável”. E o cantar dos pássaros, lhe parecia uma sinfonia. Foi tomado de uma energia mágica, que proporcionava um bem estar nunca sentido, uma verdadeira vibração de felicidade.

Seus devaneios o levaram até Sueli. Aquela mulher era demais. Um fogo intenso queimava aquela alma desavergonhada. Estavam tendo um caso nas barbas dos fiéis e até o presente momento ninguém percebera. Nem mesmo Olegário. “Mas também, pudera! O cara estava preocupado demais com a possibilidade de retornar sua vida conjugal com Verônica. A saudade dos filhos amoleceu aquele coração desavergonhado e a mulher estava quase que convencida na transformação do seu homem.” No íntimo torcia para que o amigo reatasse as relações com a ex-esposa. “Seria menos um problema... Agora! Imagina, meu Deus, se alguém dedurar para o Bodinho que estou pegando a mulher dele. Nem Jesus poderá me salvar...”.

Após terminar de saborear a terceira manga, fechou os olhos e deu um profundo suspiro de agradecimento por aquele momento divino e por alguns segundos pensou que gostaria de ficar morando naquele lugar. Tirou um breve cochilo... Pois sim, era o que pensava quando voltou a si. Pelos seus cálculos não deviam ter passados mais do que 15 minutos. Ao conferir o seu relógio ficou apavorado. No Seiko os ponteiros marcavam 16h02m. Aparentemente, o funcionamento estava perfeito. O ponteiro de segundos girava normalmente. Olhou para o céu e percebeu que o sol tinha mudado de lugar. O que teria acontecido. Como foi perder à hora... Saiu em desabalada correria rumo ao casebre. Não andou mais do que 900 metros e avistou uma pequena multidão em torno de uma casa bem simples, próxima a margem da estrada.

À medida que se aproximava do local, o som das orações ficava mais forte. Parecia que toda a população da cidade estava ali. Parou ao lado de um senhor que orava com fervor e perguntou o que estava acontecendo. O homem o reconheceu: “Senhor Santelmo!

Pensei que estivesse lá dentro com o pastor e o Prefeito; eles estão no interior do casebre tentando afastar o Demônio do velho.” Pigarreou e concluiu: “estão quase libertando o pobre homem dessa maldição”.

O vigarista olhou para todos os lados e, novamente incrédulo, perguntou ao senhor: “pode me dizer que horas são? Acho que o meu relógio está com defeito”. Recebeu como resposta: 16h39m. Batia exatamente com o seu. Ainda sem entender direito o que estava se passando foi em direção da casa. Lá estava Olegário em pleno trabalho de exorcismo, suando em bicas... E não havia meios de avisar Olegário que o plano não fora executado. Tinha fracassado na sua missão. Tão simples, era só ter convencido o velho a participar do espetáculo. O amigo estava prestes a passar o maior vexame na frente de todos.

O velho olhava fixo para o teto da sala do casebre. Estava deitado em uma rede. De repente virou o rosto para o pastor, com um sorriso irônico, e falou: “você pertence ao meu reino. Não lute contra mim. Juntos, seremos mais fortes. Abandone esta cidade, pois preciso dar uma lição nessa gente que imagina estar sob a proteção divina. Fique do meu lado e te darei muito mais poder e riqueza”.

Naquele instante, Olegário olhou para trás e abriu um sorriso ao ver Santelmo no ambiente. O cara se encheu de força e partiu para o ataque. “Eu sou a porta. Quem entrar por mim será salvo. Entrará e sairá e encontrará pastagem (João 10:9)”. Foi quando tudo começou a balançar, primeiro com pouca intensidade, depois freneticamente. O pastor pensou consigo: “caramba, Santelmo caprichou nos efeitos especiais”. O casebre de madeira tremia e uma poeira densa tomou conta do ambiente. O exorcista estava com um enorme sorriso de satisfação estampado na face. Aquilo sim era um show de pirotecnia. Já o amigo imaginava que o quase riso era de deboche, pois estava dando conta do recado sem a ajuda do assistente. O espetáculo parecia cinematográfico. A casa inteira tremia, luzes de várias cores piscavam pelos quatro cantos, a poeira mais parecia fumaça.

O Prefeito estava morrendo de medo e só pensava em sair correndo daquele lugar. Foi quando o pastor se aproximou do rosto do velho e gritou furiosamente: “saia desse corpo, Satanás!!! Sempre adorei e servi ao Senhor Deus, que é o supremo rei do universo e você, Diabo, será sempre derrotado. O meu Deus é o Senhor da vitória e este povo, esta cidade e a alma desse homem que você vem assolando pertencem ao glorioso Deus.” O povo ao redor orava com fervor. Olegário agarrou o ancião com força pelo colarinho e o puxou para a varanda. “Eu vim como a luz do mundo, para quem crê em mim não fique na escuridão (João 12:46)”. Diante da multidão que se aglomerava no terreno em frente à casa, gritou: “olhe Demônio! Veja como o povo adora a Deus. Quem pensas que és cão imundo? O único rei do mundo é Deus e tudo aqui pertence ao reino dele.”

A multidão gritava “Aleluia” e “Glória ao Senhor”. Oravam com grande devoção, enquanto o pastor continuava esbravejando:

 Saia desse corpo, Demônio imundo. Abandone esta bela cidade e deixe esse povo ordeiro e trabalhador em paz. Tu estás repreendido em nome do nosso glorioso Deus e não conseguirá fazer nenhum mal a esta gente pacata e ordeira. De agora em diante este pobre velho está sobre a proteção de nosso Senhor e de suas falanges do bem. A população de Puxaré irá tratar esse ancião como o símbolo da vitória do bem contra o mal, da derrota de Lúcifer perante o nosso Glorioso Deus, aquele que paira radiante sobre todas as formas que concebeu.

E arrematou com mais uma frase do evangelista João: “quem recebe aquele que eu enviar, é a mim que recebe. E quem me recebe, recebe aquele que me enviou (13:20)” Você, Satanás, não me governarás os sentidos, nem pela raiva, nem pela mágoa e muito menos pelo medo, porque eu sou nesse momento o prolongamento da luz que vem do Altíssimo. Tu não tens poder sobre mim!

Estrondos pipocavam por todos os lados. As luzes piscavam com mais intensidade, e agora eram mais fortes e claras, com destaque para o azul e o amarelo. O velho estrebuchava no chão, rolando de um lado para o outro da varanda. Alguns fiéis correram para ajudar. Levantaram o pobre homem que agora tinha um semblante sereno. Todos notaram a transformação estampada na face do ancião, que parecia mais jovem e belo. A comoção tomou conta dos presentes. Olegário pediu para que todos o acompanhassem na oração do Pai Nosso, após recitar um verso de São Pio de Pietrelcina: “a paz é a ordem, a harmonia em cada um de nós; é uma alegria contínua que nasce do testemunho.” Depois solicitou que a multidão caminhasse até o centro da cidade, escoltando o ermitão, para agradecerem a graça alcançada na praça principal, e que não parassem de orar durante a caminhada, pois o sucesso da vitória dependia da eterna vigilância.

A população de Puxaré estava em polvorosa. Ao chegarem ao centro da cidade o exorcista vitorioso subiu no coreto da praça da matriz e disse em alto e bom som: “vamos comer e nos alegrar, porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado” (Lc 15, 23b-24a). Os festejos atravessaram a noite e continuaram por mais três dias. Olegário e seu assistente permaneceram na cidade, sendo às principais personalidades homenageadas pelos munícipes. Nenhuma ocorrência sobrenatural aconteceu durante o período festivo. Todos concordavam que o Diabo havia partido de forma definitiva da região, graças à intervenção do pastor paulistano. O prefeito Gonzaga anunciou que construiria uma nova casa para o velho solitário, que seria ajudado pela administração municipal para que tivesse uma vida melhor.

Ananias também foi homenageado como o responsável pela vinda dos salvadores de Puxaré, além de receber um novo cargo na prefeitura, Chefe de Gabinete do Prefeito, como reconhecimento pelos relevantes serviços prestados a cidade. Mas o maior feito de Olegário foi a fusão da igreja do pastor Gonzaga, assim como de outras três da região, com a sua. Nascia assim a Igreja da Reconstituição de Vidas Para Deus de Mato Grosso. Santelmo estava exultante, pois foi indicado como o tesoureiro da nova etapa da Igreja do seu parceiro. Isso representava um bom salto na arrecadação dos dízimos. O que por baixo deveria trazer um aumento de 100 mil reais por mês. Que maravilha!!!

Os dois pilantras foram recebidos com festa e foguetório na Mata Sete. As notícias já corriam soltas na comunidade, pois Moisés foi contatado por Ananias no dia do exorcismo e informado sobre a vitória de Deus sobre Satanás, sob o comando do pastor. Era um momento radiante para todos. A vitória do bem sobre o mal deixou a comunidade em êxtase. Olegário nomeou Moisés como seu substituto, consagrando o amigo como pastor, em uma festa magnífica, onde quase toda a comunidade comeu e bebeu durante um final de semana inteiro para festejar a ordenação. A coisa estava tão boa para o lado dos vigaristas que diversas congregações passaram a serem administradas pela Igreja da Reconstrução de Vidas para Deus, que agora tinha ainda mais horários alugados em emissoras de rádio e televisão. O momento era de ascensão.

Com os fartos recursos financeiros entrando nas contas da Igreja, foi fácil para Olegário criar a Casa de Restauração do Ex-Presidiário, visando inserir na sociedade aqueles indivíduos que por contingências do destino tinham se afastado do bom caminho. O trabalho foi iniciado com cursos de qualificação para diversas profissões, como: padeiro, cozinheiro, contador, almoxarife, motorista e pedreiro.

Após receberem os seus certificados, os recém-formados eram encaminhados para empresas que constavam no cadastro da Igreja Reconstrução de Vidas para Deus, todas inscritas em programas governamentais que garantiam isenções ficais. A empreitada deu tão certo que eles partiram para o atendimento médico, extensivo aos familiares dos apenados no sistema penitenciário estadual. Todas as igrejas conveniadas participavam das iniciativas, com um grande número de fiéis voluntários, que se revezavam no atendimento aos necessitados.

A princípio, Santelmo discordou do parceiro, pois não queria bancar as despesas com o atendimento social dos fiéis, o que iria sangrar grande parte do faturamento. Mas acabou convencido pelo amigo, que demonstrou o quanto aquela ação assistencialista iria atrair mais pessoas para o negócio deles e que não iriam abrir mão da vida de luxo que estavam levando. Assim também poderia oferecer mais presentes e mimos para Sueli. Aquela mulata de fechar o comércio gostava de luxo e nada como uma graninha extra para fazer frente aos regalos que Bodinho mandava para a sua mulher de “confiança”... Sendo assim, o assistente do pastor cedeu aos argumentos do seu líder espiritual. Além do mais, estavam realizando um trabalho que amenizava o sofrimento das pessoas. Isso gera um bom marketing e desenvolve um sentimento positivo, angariando apoio da população, mesmo junto às pessoas que não participavam da igreja.

* Estória de Jeronimo Guimarães Filho, adaptada e copidescada por mim.

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