O diabo e o exorcista trapaceiro* - capítulo 2


Capítulo 2

A inauguração do templo de Deus

Todos davam os parabéns a Olegário, enquanto Santelmo conferia o dinheiro arrecadado pela beata na sacola de plástico do supermercado que pertencia à rede de Pepe e Marcio Costa. Vejam só que coincidência. Santelmo teve arrepios de deixar todos os pelos do corpo eriçados. O pastor indagava ao grupo quem ali tinha sido enviado pelo irmão Bodinho. Apresentou-se Moisés, o cara que liderava os fiéis que vieram da favela Mata Sete. Após cumprimentar o pregador com um forte aperto de mãos, fez a apresentação dos seis irmãos e cinco irmãs que o acompanhavam, falando um pouco sobre cada um. Essa era a comissão de recepção ao pastor, elaborada por Moisés a pedido de Bodinho. A missão: levar Olegário até o templo que foi erguido na favela. O líder dos fiéis era um sujeito bem falante. Durante o trajeto, fez um relato pormenorizado sobre as obras na igreja, o mobiliário e a residência anexa. Disse que participou de toda a obra, tijolo por tijolo, pois era pedreiro de ofício, garantindo que seguiu à risca todas as instruções do chefão. A obra foi projetada por engenheiros e arquitetos, tudo com material de primeira e muito esmero por parte dos artífices. O complexo era composto por um templo para aproximadamente 500 pessoas, estacionamento para aproximadamente 50 automóveis, biblioteca, sala para 30 computadores, enfermaria com quatro leitos, cozinha industrial, cinco escritórios, e um anexo com quatro suítes, duas salas grandes para reuniões, três salas de aula, cada uma com 30 lugares. Um luxo na Mata Sete. O pastor ouviu tudo com atenção e não escondeu o entusiasmo. Agradeceu a Moisés todo o carinho e dedicação e pediu para passarem na casa de Santelmo antes de irem para a igreja, pois o irmão se encontrava em um estado lastimável, necessitando de um bom banho e de uma nova muda de roupas. Se aproximando do pedreiro e abraçando-o com firmeza, disse-lhe ao pé do ouvido: “vou convencer o cara de ir morar comigo na nova residência que você construiu”.

Já em casa, quando teve uma oportunidade a sós com o amigo de golpes, Santelmo comentou: "cara, você conseguiu me assustar de verdade: me urinei todo. Mas tenho que tirar o chapéu: esse seu novo esquema é genial!!! Tenho certeza que vamos realmente ganhar muita grana." O companheiro interrompeu a conversa e mandou na lata: "quero que você comece a ler a bíblia a partir de hoje, pois tenho muito trabalho pela frente e você vai precisar conhecer muito bem as escrituras sagradas, para ficar afiado nos cultos." O amigo, enquanto trocava a camisa estampada por uma social totalmente branca, usada só para casamento e ocasiões solenes, respondeu: "... pode deixar comigo, pastor, em pouco tempo você terá que me nomear seu auxiliar direto. Mas me diga uma coisa: não vais procurar por Verônica? Ela está morando em Osasco.” Os olhos de Olegário brilharam intensamente. “Por favor, me dê logo esse endereço. Estou morrendo de saudade dessa baixinha tinhosa...”

Ao chegarem à favela, foram recebidos com muita festa e animação. Mais de 200 pessoas aguardavam o grupo, amontoadas no pátio do estacionamento, bem em frente à entrada da igreja, que foi construída na rua do acesso principal a Mata Sete. Ficava a menos de 100 metros da comunidade, bem localizada e próxima a um grande supermercado, em uma via de intenso movimento de carros e pedestres. Olegário ficou encantado. Por mais que o falante Moisés tivesse descrito o local, nada se comparava à realidade. A visão monumental da obra ia além das expectativas. Logo na entrada, após o pátio dos veículos, havia um belo e florido jardim. O pastor, compelido por fortes e sinceras emoções, se prostrou de joelhos e braços abertos e orou silenciosamente. Da sua face rolavam muitas lágrimas. A multidão acabou acompanhando o gesto do pilantra. Todos se colocaram de joelhos e fizeram suas orações ao Todo Poderoso.

Algumas vezes, o pastor sentia de fato que estava em comunhão com Deus. Nessas ocasiões não tinha nenhuma vontade de ludibriar as pessoas. Ficava surpreso com o sentimento que invadia a sua mente e o seu coração. Nesses momentos sentia mesmo uma forte vontade de ajudar ao próximo, de fazer o bem. Era o que se passava com ele ali, bem defronte aquele complexo maravilhoso. Agora estava sendo recebido como um homem de Deus por todo aquele povo humilde, que acreditava na sua grandeza espiritual como pastor. Era uma dádiva toda aquela manifestação, e ele se perguntava, em sua conversa com o Altíssimo: "seria um dia castigado por seus atos pecaminosos?"

As pessoas que foram esperar o pastor na saída da penitenciária já tinham ouvido falar do enorme sucesso das curas e exorcismos do pastor Olegário, mas nunca tinham presenciado sua ação evangélica, os seus dons divinos. Naquela manhã, tiveram uma pequena amostra da força daquele homem de Deus e parece que gostaram muito. Os comentários na igreja, enquanto os fiéis se acomodavam nos bonitos bancos trabalhados em madeira maciça, eram todos a respeito de como participaram da libertação demoníaca do irmão Santelmo. O feito foi rapidamente propalado aos quatro cantos da Mata Sete. Sabem daquele ditado popular: “quem conta um conto aumenta um ponto”. Pois é, lá estavam os fiéis caprichando na narrativa do exorcismo que acabaram participando como auxiliares daquele grande pregador, que agora iria morar pertinho deles.

Bodinho era um matador sanguinário, temido por todos na favela. Sua fama já tinha corrido a grande São Paulo e atingido municípios próximos. O bandido era um tipo de gente que, quando falava, as pessoas não sabiam se deviam chorar ou cair na gargalhada para não desapontá-lo, pois a reação do marginal poderia pôr fim em suas vidas. Quando em liberdade, o facínora gostava de frequentar, com regularidade, um terreiro de quimbanda. Pra quem não conhece um local onde se pratica a magia negra, localizado dentro da Mata Sete. O nome da localidade veio da fama do lugar. O pai de santo era conhecido como Dedé Macumba, que dizia ter o poder de fechar o corpo das pessoas contra balas, doenças e prisões. Era o oráculo da malandragem. Dava conselhos sobre os melhores dias para se praticarem os crimes, receberem carregamento de drogas e despacharem os inimigos dessa para a melhor. Quando alguém do pedaço não agradava Dedé com uma boa mufunfa ou um bom regalo, este arranjava rapidinho um meio do malandro ir parar num micro-ondas (aquele forno improvisado com pneus e muita gasolina, com o corpo do infeliz sendo colocado no meio da parafernália) e queimar até não sobrar nada para um exame de DNA.

Todos na favela sabiam da grande influência que o pai de santo exercia sobre Bodinho. Dedé explorava de todas as formas possíveis esse domínio sobre o bandido. O espírita era um elemento inescrupuloso, maléfico, zombeteiro. Quando não gostava de alguém, mesmo que a pessoa não tivesse envolvimento com negócios criminosos e nem mesmo desavenças com o macumbeiro, na primeira oportunidade detonava o infeliz com Bodinho. Pronto, estava selada a morte da figura, pois o marginal tinha o prazer de despachar qualquer um que ficasse mal na fita com o seu venerado líder espiritual. Dedé conseguiu fazer com que o chefe do tráfico na Mata Sete se rendesse as suas mandingas. Sendo assim, nada se fazia na favela sem que antes as pessoas fossem se consultar com o macumbeiro. A maioria dos moradores e até mesmo da malandragem, não acreditava nos poderes do pai de santo, mas ninguém se atrevia a questionar suas previsões, preferindo pagar as consultas para não ser a bola da vez na mira do chefão do tráfico na localidade.

O momento mais rendoso para o pai de santo era quando alguém da boca ia para o xilindró. A população da Mata Sete entrava em pânico. Percebendo isso, o macumbeiro bolou o seguinte esquema, que se mostrou muito eficiente: em função da aflição de todos, mesmo que um bandido fosse preso por acaso, era de praxe Dedé vaticinar que tinha delator na área, pois havia convencido Bodinho que, com a sua proteção, ninguém seria detido se não fosse através de uma denúncia. Caso de X9. Funcionava da seguinte forma: o espírita pedia um prazo ao chefão e o aconselhava rodar com um carro de som por toda a comunidade anunciando: “o bicho vai pegar pro safado que caguetou meu parceiro. Vou descobrir em até 3 dias o nome do pilantra. Meu pai de santo vai me revelar quem é a figura e o cerol vai comer fininho. Vou enfiar a cabeça do infeliz em uma estaca bem na encruzilhada próxima ao terreiro”.

Nos dias que sucediam ao tenebroso recado era um Deus nos acuda. Todos na favela se viam obrigados a pagar uma consulta com o macumbeiro safado. Ainda tinham que enfrentar uma fila enorme, debaixo de chuva ou de sol, e muitos ainda davam uma boa gorjeta para o espertalhão que, nessas ocasiões, faturava horrores. O pai de santo sempre arrumava o nome de um infeliz para detonar, e com isso, Bodinho soltava mais carvão pela informação espiritual. Dedé estava conquistando um excelente patrimônio e se aproveitava da situação para fazer agiotagem com os moradores da Mata Sete e adjacências. O pilantra cobrava juros exorbitantes, bem além dos estipulados pelo Banco Central, com a segurança que ninguém deixava de pagar as parcelas do empréstimo religiosamente em dia.

Bodinho seguia a risca todos os conselhos do mandingueiro e acreditava, sem questionar, nas previsões do safado. O chefão tinha certeza que estava com o corpo fechado contra a morte e a prisão, pois gastava uma grana preta com todos os santos. Os trabalhos eram mesmo da pesada. Matança de bode preto, galinhas, cabeça de boi e sapos enterrados e muitas outras maquinações que eram preparadas no cemitério clandestino da Mata Sete. Certo dia o macumbeiro, não resistindo à ganância de se apropriar das joias do traficante, encasquetou na cabeça do cara que os Exus estavam cobrando do bandido o enterro de todo o ouro que possuía e que qualquer um que tentasse se apossar do tesouro seria fulminado. E não é que o otário atendeu ao pedido do salafrário e colocou suas joias no cemitério clandestino da favela. O pai de santo malandro voltou ao local do tesouro e tomou posse de tudo. O montante quase batia 6 quilos.

No dia em que Bodinho foi preso, Dedé estava no terreiro, dizendo receber a entidade Zé Pelintra, que segundo o pai de santo, era o Exu que protegia o chefe do tráfico na Mata Sete. O macumbeiro estava dando consultas para o chefe e seu bando quando a polícia anunciou o cerco. O safado esqueceu que estava manifestado e gritou histérico: "... aí meu Jesus misericordioso, me salva!" Bodinho ficou sem entender nada. Muito menos quando o pai de santo, com sua túnica toda enfeitada de pedras semipreciosas, com uma espécie de turbante na cabeça, galgou todo serelepe o muro do terreiro e ralou peito, abandonando todo mundo na mão da Federal. Resultado da operação: o chefão entrou em cana com vários dos seus asseclas. Foi acusado de vários assassinatos, tráfico de drogas e formação de quadrilha.

A ficha custou um pouco a cair, mas com o tempo passando e os advogados não conseguindo livrar a sua cara, o traficante foi juntando os pauzinhos e acabou chegando a seguinte conclusão: o pai de santo era um tremendo 171. O pilantra na história era Dedé. Se as entidades que dizia incorporar fossem firmes mesmo, não o deixariam naquela situação. Depois de colocar tanta grana na mão do macumbeiro e acabar trancafiado, sem conseguir escapar nem da Polícia e nem da Justiça. Os dias de Dedé estavam contados. Ah, se estavam!!! Da cadeia, após 3 meses disputando espaço numa cela fétida da Polinter, Bodinho chegou a conclusão que fora traído pelo macumbeiro. No mesmo instante, uma raiva monstruosa tomou conta de sua mente e do seu corpo, que tremia da cabeça aos pés. Naquela hora, deu ordens à sua mulher, a única pessoa a visitar o marginal na cana dura, para que os homens sob o seu comando na Mata Sete descem um fim no pai de santo. Queria ver uma foto da cabeça de Dedé fora do corpo, estacada na entrada do terreiro. O trambiqueiro provou do mesmo veneno que preparou e serviu para muitas pessoas da comunidade. A maioria dos malandros da boca também gostou da atitude do patrão. Muitos participaram do festival macabro de extermínio. Os moradores da favela ficaram apreensivos, temiam uma revolta dos espíritos que o pilantra dizia manter contato. Mas, passadas algumas semanas e a vida seguindo normalmente na comunidade, acabaram festejando o ocorrido.

Mas a calma só voltou a reinar mesmo na Mata Sete quando a população tomou conhecimento que um pastor tinha conseguido o feito de transformar o sanguinário Bodinho em um cordeirinho, um verdadeiro cristão. Foi um alívio na localidade. Finalmente a paz e a esperança voltaram a fazer parte do dia a dia da favela. Passaram a viver em harmonia, pois os bandidos sob o comando do novo homem em que o chefe se transformou, passaram a não infernizar a vida dos moradores da comunidade. Mais admirados ficaram ao tomarem conhecimento que o bandido, além de se converter, mandou erguer um templo cristão no local. A curiosidade era grande, e quase todos os moradores queriam ver de perto o homem que conseguiu fazer o milagre de tirar Bodinho das garras do maligno. Conheciam bem o traficante e sabiam da sua fama de assassino temperamental. Estavam ali, no pátio e dentro da igreja, para ver de perto o enviado de Deus, o homem que livrou o chefe do tráfico das trevas. Os comentários giravam em torno dos feitos da grande criatura que livrou vários marginais do caminho do mal, durante o tempo em que esteve na cadeia. Mas eles só tinham ouvido falar, e agora poderiam ver com os seus próprios olhos. Isso deixava no ar uma atmosfera de excitação. O pastor já era considerado um rei, como Salomão, que construiu um templo para louvar a Deus, pois havia dobrado Bodinho, que acabara edificando um complexo na comunidade em homenagem ao mensageiro do Senhor.

O pastor, mesmo antes de pisar na Mata Sete, já era considerado pela maioria dos moradores como um homem de Deus. Seus feitos nas cadeias do estado haviam chegado com grande estardalhaço na comunidade, ao longo dos meses em que Bodinho tomou conhecimento da existência do representante divino na penitenciária. A maior divulgadora das histórias fantásticas era Sueli, a mulata gostosa que se dizia a número um do chefão engaiolado. O comentário mais ouvido no dia da chegada de Olegário à comunidade era o feito de ter colocado para correr, logo no primeiro minuto que pisou fora da prisão, o Demônio que habitava o corpo de um pecador, seu velho parceiro de falcatruas, restaurando essa alma para o reino do céu. Todos que viviam apavorados com as ações tenebrosas do traficante vislumbraram momentos de harmonia na favela, após a chegada do pregador.

O lugar tenente de Bodinho era o bandido Cabeleira, que recebeu ordens do chefão para que todos na Mata Sete dessem apoio ao pastor, “um homem santo e que iria interceder, junto a Deus, para que a comunidade pudesse escapar do inferno.” Para os moradores da área, que viviam em estado de terror sob o comando do traficante, surgia uma luz no fim do túnel: a esperança em uma nova etapa de vida, com fé cristã e amor ao próximo, sob o domínio daquele homem que havia convertido o chefe do tráfico. O recado que foi enviado do presídio era claro e contundente:

− Agora sou cristão. Nós todos temos que dar satisfações a Deus dos nossos atos. Existem poucas pessoas que falam com o Senhor, e Olegário é uma delas. Conversa com o Todo Poderoso até em línguas estranhas, que só os iluminados entendem. Eu garanto: o pastor tem prestígio junto ao nosso Pai, pois faz milagres na frente de qualquer pessoa. Eu mesmo vi quando ele expulsou os Demônios de vários malandros na cadeia. Até eu fui exorcizado. Também presenciei quando ele curou diversas pessoas, cegas e paralíticas. Se alguém conspirar contra esse homem de Deus, vai sentir toda a minha ira.

Bodinho deixava bem claro para os seus homens: "quero que em cada rua da favela tenha um salmo pintado em um muro. Trabalho de primeira, caprichado. O pastor vai escolher os escritos. Cabeleira, trate de vigiar bem a Sueli, para que ela frequente a igreja e sempre obedeça ao pastor."

A cada dia que passava, os moradores da favela ficavam mais tranquilos quanto à convivência com Cabeleira e seus seguidores, pois a conversão de Bodinho estava ajudando, e muito, às coisas fluírem bem na região. O pastor agendou a inauguração do templo: seria no sétimo dia após a sua chegada a Mata Sete, pois caia em um Domingo, por sinal ensolarado, sem uma nuvem no céu, com aquele tom de azul celestial. Moisés teve uma longa conversa com Olegário dois dias antes do culto, colocando-o a par de como as coisas funcionavam na comunidade. Quem era quem, quem devia a quem, os fiéis e os infiéis... Enfim, tudo sobre todos, além dos fatos que marcaram com violência a vida daquelas pessoas, principalmente os ocorridos durante o reinado de Dedé Macumba. O pregador ouvia com atenção toda a exposição e teve a sua intuição despertada sobre a notícia que circulava com grande alarido na área: Bodinho abandonou o crime e Cabeleira agora é quem mandava no pedaço, mas que ninguém se metesse a besta com o pastor, pois ele era protegido de todos que estavam no comando da favela.

Olegário planejou com esmero, contando com a eficiente colaboração do parceiro, cada detalhe da inauguração do complexo construído por Bodinho e sua quadrilha. O entusiasmo tomou conta dos dois trambiqueiros. A comunidade estava em festa, aguardando o grande dia, quando iriam conhecer a performance do homem que dobrou Bodinho. Era um tal de ouvir em cada esquina: “Aleluia!!!”, “Glória a Deus!!!” Algo inimaginável uns meses atrás. Santelmo estava preocupado com apenas um detalhe: o antigo chefão estava convertido, mas será que poderiam confiar no maluco cabeludo que assumiu o comando? Mas foi confortado pelo amigo, que disse com aquela voz angelical.

− Fique tranquilo irmão, não haverá qualquer problema com a bandidagem. Todos sempre respeitaram Bodinho e agora, devido à conversão do cara, essa reverência tinha aumentado e muito, pois estavam felizes com as mudanças operadas na Mata Sete. Quer apostar que teremos mais de 500 pessoas no evento? Mas você será peça fundamental para o sucesso.

Eu?!? Não vejo como posso ser tão importante nessa história.” O pastor passou a narrar como gostaria de ver o amigo atuando.

− Precisamos de uma boa encenação das pessoas que vão ser curadas. Coisa de primeira linha. Você deve contratar atores profissionais. Procure nas escolas de teatro. Esse povo vive a míngua. Qualquer pichulé faz vista para eles. Mas quero que você abra a mão. Quinhentas pratas para cada um. Escolha três para serem exorcizados e quatro ou cinco para serem curados. A cura faz mais sucesso do que a retirada do Diabo...

E continuou com suas explicações, dizendo que logo após a representação, todos deviam sumir imediatamente do local, para evitar suspeitas e não darem mancada. Santelmo garantiu que cuidaria de tudo com afinco, pois já estava lendo a bíblia e se inteirando a respeito das manifestações diabólicas e dos milagres divinos.

Finalmente chegou o grande dia para a comunidade Mata Sete. Belo domingo de sol, quente e radiante. Uma banda evangélica ocupava o espaço ao lado do púlpito, acompanhando cantores que saudavam os presentes com suas músicas e louvores, animando as mais de 500 pessoas que se aglomeravam no templo. Do lado de fora, no jardim e no estacionamento, quase mil fiéis se apinhavam para ouvir e ver, através de dois telões montados no espaço, o culto do pastor que havia operado o milagre da conversão de Bodinho. Quinze homens estavam sentados nos últimos bancos da igreja e Olegário, logo que subiu ao palco, percebeu a diferença daqueles indivíduos para os demais participantes do culto. Os caras trajavam roupas espalhafatosas, grandes colares, pulseiras e anéis de ouro. Uns nem tiraram os bonés, em uma postura ofensiva e arrogante para quem visita a Casa do Senhor. Sua intuição era de que aqueles sujeitos integravam a tropa de choque de Cabeleira. Olhou na direção de Santelmo, que estava ajoelhado sobre uma almofada, para proteger os seus gordos joelhos, fingindo orar compenetrado, bem próximo ao púlpito, e com um sutil movimento de olhos, indicou a direção da turba. O amigo captou a mensagem codificada e foi dar as boas vindas, pois aquele pessoal era encrenca na certa e poderiam comprometer toda a encenação que seria realizada no local.

"Boa noite, meus iluminados irmãos, que a paz do Senhor repouse em seus corações." Cabeleira deu um pulo do banco onde estava sentado e ordenou aos seus homens: "ajoelhem-se seus burros, vocês estão na frente do homem que mandava na cadeia e sabe conversar com Deus!" Imediatamente, os caras caíram de joelhos e iniciaram a oração do Pai Nosso, enquanto Santelmo tentava desesperadamente explicar que não era quem ele estava pensando. Quando conseguiu se fazer entender deparou com Cabeleira puto da vida, frustrado e revoltado por fazer papel de bobo diante de seus comandados. O bandido agarrou o cabra pela gola do paletó e falou: "... tá querendo se passar pelo pastor, seu filho da puta. Vou te ensinar a não enganar quem manda na Mata Sete…", e já ia dar um belo murro na cara avermelhada do pilantra quando se fez ouvir a voz imperiosa de Olegário, amplificada pelas potentes caixas de som espalhadas no recinto: "... parem já com isso! Eu sou o pastor e esta é a casa de Deus, nosso senhor, e todos aqui devem agir com respeito e veneração".

Cabeleira soltou Santelmo de imediato, que saiu correndo em direção a Olegário, o qual iniciou o culto a partir daquele momento:

− Os irmãos estão aqui reunidos porque assim Deus determinou, e temos que agradecer a Ele por tudo aquilo que nos tem dado. Muitos podem se atrever a perguntar ou questionar o que o Senhor tem nos presenteado ou não. E eu vos digo com toda a minha convicção: tudo, simplesmente tudo. Basta vocês terem o entendimento de que a vida é tudo. E quem nos deu a vida? Viver é estar na Graça do Senhor. A morte, para aquele que não viveu sob as bênçãos do Céu é o fim. São as trevas. O nada. Sem vida, nada existe no universo, somente o Todo Poderoso dá esperança ao homem. Deus deixou escrito na alma humana os seus ensinamentos sobre todas as coisas boas e definiu também as que não prestam. Alertou ao ser humano que aquele que praticar o bem ganhará o Reino dos Céus e viverá eternamente em paz. Mas aquele que decidir viver sob o domínio do mal irá arder pela eternidade no fogo do inferno e será escravizado por Satanás. O Senhor fez o homem perfeito. O ser humano é bom por natureza na criação divina, mas o Diabo, em sua inveja e despeito para com o criador, vive iludindo as pessoas e cada alma que consegue queimar no fogo da sua morada o coisa ruim se vangloria de ceifar uma vida da criação. Só terá vida eterna na paz divina aquele que caminhar com Deus no coração e nas suas ações. Aqueles que se entregarem as maldades e libidinagens estarão fadados a se extinguirem nas chamas ardentes do inferno, sob as asas diabólicas do maligno. Mas não esqueçam: Deus é infinitamente bondoso e perdoa todo pecador que se arrepender verdadeiramente dos seus atos errados. Já dizia o filósofo grego Sêneca: "podes fugir dos outros, mas não de ti mesmo." Não olhe para o passado, arrependa-se do mal que praticaste. O que passou, passou. Para o Senhor é assim. Ele vai ler no coração de cada um a confissão do arrependimento. E se você não praticar mais o mal, estará salvo e terás as bênçãos da vida eterna ao lado do Pai todo Poderoso. Só assim você derrotará o Demônio...

−... Recentemente tivemos um exemplo da vitória contra o coisa ruim, e muita gente aqui testemunhou o Diabo perder feio para Deus quando o irmão Bodinho abandonou o crime e mostrou estar arrependido de tudo o que fez de errado no passado. Eu vos digo: ele está salvo! Deus observa tudo. Os irmãos que estão sentados no último banco da casa do senhor - todos os presentes se voltaram para o fundo da igreja, e Olegário esperou alguns segundos para continuar - teriam eles pescoço para ostentar aqueles cordões de ouro se Deus não permitisse? Claro que não! O Senhor tem um propósito para a vida de cada um e todos serão exemplo da vitória ou da derrota para o mundo. Todos terão sua chance de provarem que poderão vencer basta que suas ações sejam boas aos olhos do Senhor, assim, continuarão a desfrutar das maravilhas do Reino dos Céus... Meus irmãos: não quero que frequentem a nossa igreja por imposição, mas sim pela pureza dos impulsos de seus corações no amor por Deus. Estarei sempre de braços abertos para receber todos vocês. Ninguém deve vir a está Casa obrigado. Ouvi dizer que nesta comunidade as pessoas viviam ameaçadas e eram obrigadas a frequentarem rituais diferentes das suas crenças, para não sofrerem violências. Comigo não será assim, eu garanto. A partir de agora só deverão vir aqui aqueles que têm o compromisso de fazer o bem. O homem que continuar a praticar o mal não será julgado por mim, mas sim pelo Todo Poderoso...

Após quase duas horas de pregação, Olegário conseguiu atingir o seu intento, isto é, transmitiu confiança e esperança para os fiéis, que estavam felizes por se verem livres de Dedé Macumba e terem a confirmação de que Bodinho havia mesmo se convertido. O clima era de harmonia e contentamento pelas palavras proferidas pelo pastor. Ficou claro para os presentes que tudo seria diferente do que ocorria no período dominado pelo macumbeiro. Após o sermão foram dados vários testemunhos de vitórias alcançadas sobre o coisa ruim. Durante o culto, foram expulsas muitas legiões de Demônios que estavam habitando o corpo das pessoas, inclusive dois homens do bando de Cabeleira, que estavam possuídos, foram exorcizados. Outros tantos indivíduos, que se encontravam enfermos, foram curados e saíram correndo pela igreja gritando Glória a Deus estou curado. Outros foram para casa cantando alegremente louvores ao Senhor. Alguns aleijados largaram suas muletas e cadeiras de roda e também pulavam de alegria e agradeciam a Deus e ao pastor. Cegos voltaram a enxergar. Uma mulher, toda entrevada, que havia entrado na casa do senhor caminhando com muita dificuldade, amparada por um homem, saiu andando normalmente aos prantos, agradecendo a graça alcançada, dizendo: "fui curada pelas mãos do pastor Olegário, que é um homem de Deus." O culto foi um sucesso! A euforia tomou conta do ambiente. Uns choravam copiosamente de alegria, outros sorriam de orelha a orelha, outro tanto caía de joelhos e oravam a Deus, em reconhecimento as dádivas alcançadas. Todos gritavam histericamente a cada milagre que surgia. Até do lado de fora da igreja ocorreram feitos milagrosos.

Ao finalizar o culto, o pastor vaticinou:

− Havia, neste local, uma tendência para o mal. Lúcifer está furioso com a nossa presença, mas nós vamos conseguir vencer a peleja e expulsá-lo de uma vez por toda da Mata Sete!!!" Todos elevaram os seus pensamentos ao altíssimo e gritaram: “aleluia!!!”

− "Irmãos, estamos finalizando o primeiro culto realizado em nossa Casa, e Deus se fez presente, pois ficou honrado com o que viu hoje aqui. Existe uma importante necessidade de continuar a obra do Altíssimo, e devo dizer a todos vocês: a fé sem obra é letra morta e todos devem se cadastrar no livro sagrado dos dízimos, pois temos o firme propósito de criar uma bela obra social em nossa comunidade para buscar a recuperação dos presos que serão libertados e, por certo, não encontrarão apoio na sociedade, e assim, não poderão se afastar do crime e das garras do Diabo, caindo novamente em desgraça e reincidindo na vida marginal.

Após proferir as últimas palavras, Olegário fez uma oração muito emocionada, sempre com a mão sobre o caderno dos dízimos pedindo a Deus que todos honrassem com seus nomes e contribuições aquele livro, para assim serem considerados membros efetivos da igreja, e o Senhor, certamente, proporcionará a todos a graça de verem, cada vez mais, os seus ganhos aumentando. Ainda aproveitou o momento de grande comoção para anunciar a escolha do nome denominativo da congregação que seria; "Igreja da Reconstrução de Vidas para Deus". Foi aclamado com uma salva de palmas e gritos de aleluia que duraram mais de 3 minutos. Também não se esqueceu de elogiar e agradecer o parceiro Santelmo, por ter sido o autor da denominação, "certamente inspirado pelo Altíssimo." Aproveitou a aclamação calorosa dos fiéis e mandou.

− Este é o momento para que cada irmão aqui presente faça ou refaça a sua aliança com Deus. O princípio da nossa obra é dar para receber". Já dizia Sófocles, outro sábio grego, "o céu não ajuda a quem não quer se mexer."

− E continuou solicitando doações aos fiéis, “pois o Altíssimo saberia avaliar, de acordo com a contribuição de cada um, o que vocês devem receber do retorno divino.”

− Dito isto, mandou o irmão Moisés com uma sacola de papel pardo, comprada numa papelaria, recolher do lado de fora da igreja e Santelmo faria o mesmo no interior, sendo que deixou bem claro que todos poderiam contribuir com o que dispusessem no momento. Os olhos do comparsa brilhavam com cada vez mais intensidade à medida que a sacola estufava. Ninguém deixou de contribuir. Enquanto passavam as sacolas, ajudados por mais uma dezena de fiéis, todos indicados por Moisés, a banda atacava nos hinos de louvores ao Senhor. Santelmo notava que pelo peso da sua sacola algumas pessoas tinham colaborado com objetos pessoais, e ao se aproximar do último banco cruzou com o olhar frio de Cabeleira. Tremeu da cabeça aos pés de medo e pensou: “estes caras vão querer se apoderar dos dízimos. Acho melhor voltar antes de chegar até eles...” Virou de súbito, e cabisbaixo, ia retornando em direção ao altar, quando ouviu as suas costas a voz do chefe dos bandidos.

"Venha cá, seu cretino". O auxiliar do pastor deu meia volta com um sorriso amarelo estampado na cara, tentando esconder a sacola nas suas costas. "Ah, estou recolhendo o dinheiro das contribuições..." Cabeleira, em tom ameaçador: "passe já essa sacola pra cá, seu bosta", e foi logo tomando-a das mãos trêmulas de Santelmo. "Você tá de vacilação com a gente. Tá querendo nos discriminar e tirar o nosso direito de colaborar com o Homem lá do céu." Meteu a mão no bolso e contou 2 mil reais. Em seguida, tirou o cordão de ouro do pescoço, que devia pesar aproximadamente 300 gramas, e jogou dentro da saca. Os seus homens procederam da mesma forma, inclusive se desfazendo das joias que ostentavam. O sorriso amarelo do recolhedor de dízimos mudou para outro da mais pura satisfação. Sua missão estava cumprida, e o peso das doações garantia, com toda a certeza, uma bela e proveitosa colheita. Agradeceu titubeando palavras, onde se incluíam “Glória a Deus”, “salve nosso Senhor”, “aleluia irmãos”. Quando já se preparava para deixar os bandidos colaboradores, deu de cara com Moisés retornando do pátio externo, abraçado ao saco de papel, recheado de doações e muito dinheiro. O golpista quase deu um grito de regozijo. Teve que conter o espasmo na garganta.

A inauguração do templo da “Reconstrução de Vidas para Deus” foi um tremendo sucesso. Em todos os sentidos. Vejamos: para a população da Mata Sete, ficou bem claro que a filosofia terrorista de Dedé, de imposição na participação dos rituais de macumba, não seria mais aplicada. Puderam constatar, com seus próprios olhos, diversos milagres serem realizados. De fato o pastor era um homem de Deus. Para os bandidos, Bodinho estava com a razão, Olegário traria paz e bons lucros aos negócios, desde que eles colaborassem com a obra do Senhor. Santelmo exultava de contentamento pela polpuda arrecadação das doações. Descontadas as despesas, na casa dos 9 mil reais, o lucro com a brilhante jogada do parceiro era de aproximadamente 30 mil. Foram depositados nas sacas de papel vários celulares, relógios, cordões, anéis, pulseiras, brincos de ouro e prata, além da grana em espécie. A mesa da biblioteca estava repleta com as ofertas recolhidas no dia anterior. Agora era o momento de prestar contas com ao amigo. Explicou que teve de gastar uns 5 mil reais contratando vigaristas que se passaram por endemoniados e doentes. Confidenciou ao colega de trambiques: “estou me sentindo um inútil, pois pensei que você tivesse deixado por minha conta a contratação dos artistas, assim como as orientações de como eles deveriam proceder no show. Você acabou interferindo no espetáculo, por sinal com grande maestria. O que foi aquilo, irmão? Cada representação que mais parecia ser a mais pura realidade...”

"Você está louco, Santelmo, eu não contratei ninguém!" O amigo, atônito, replicou: "... mas Olegário foram mais de 20 pessoas curadas, de doenças ou possessões. Teve gente que largou das muletas e voltou a andar. Até um cego que saiu enxergando. Só contratei seis vigaristas, pois achei um número suficiente para a realização dos milagres, afinal era o seu primeiro culto na comunidade." O pastor se acalmou e, após tomar um copo de cerveja bem geladinho, falou com calma e um pouco melancólico.

− Parceiro, eu juro pela saúde de Verônica que não contratei ninguém. Vou te confessar uma coisa que está me deixando cabreiro... Há muito tempo coisas parecidas têm acontecido nos meus cultos nas cadeias. Fico encucado, mas não encontro explicação. O importante é seguirmos com o nosso plano e não nos preocuparmos muito com esses doidos. Mas pensei que ontem todas as pessoas tinham sido contratadas por você. Passou-me o seguinte pensamento: Santelmo está exagerando, assim vamos ficar com uma pequena margem de lucro, mas tudo bem, para o primeiro espetáculo foi bom... Depois converso com ele... Amigo você notou a gostosura daquela Sueli? Nossa: o que é aquilo! Quase me desconcentro no culto...

        "Pastor, aquilo é um pedaço do mau caminho. Fiquei tonto olhando para aqueles peitos e par de coxas. O senhor vai ter que conversar com a piriguete... As roupas da chave de cadeia não estão adequadas para uma religiosa...” Caíram na gargalhada. “Vou te contar uma coisa, Santelmo: se ela der mole eu vou pegar...” “Pega nada, pastor! Na hora H Verônica vai surgir na sua mente e o menino não vai subir nem na base do cacete...” Mais gargalhadas espalhafatosas. Os dois continuaram bebendo a cervejinha e colocando o papo das traquinagens em dia. No livro dos dizimistas, já estavam inscritos quase que 300 colaboradores, o que anunciava uma bela arrecadação mensal na contabilidade da firma. As notícias do sucesso da inauguração da "Igreja da Reconstrução de Vidas para Deus" chegaram ao conhecimento de Bodinho. O cara gritava de satisfação em todas as galerias da penitenciária: "o pastor Olegário curou mais de 100 pessoas na minha favela!" O bandido estava exagerando, mas quem é brabo na cadeia pode falar o que bem entender e ninguém é louco de contestar, pelo contrário, todos apoiam a maior mentira como se fosse uma grande verdade. Bodinho nutria a esperança de um dia voltar para a Mata Sete e poder ver de perto o templo do Senhor que mandou erguer. Tinha a convicção que isso iria ocorrer cedo ou tarde, porque o seu pastor havia sonhado, quando ainda estava trancafiado, que Deus perdoava o traficante por todos os seus pecados e que, embora este estivesse condenado a mais de 100 anos de reclusão, em menos de 5 o Altíssimo o colocaria fora das grades.

        * Estória de Jeronimo Guimarães Filho, adaptada e copidescada por mim.

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