Capítulo 1
A liberdade
O sol brilhava com intensidade naquela linda manhã e o dia parecia ter sido preparado exclusivamente para Olegário, assim pensava o malandro ao cruzar o portão da penitenciária de segurança máxima, que dava acesso ao pátio central. Todos os presos estavam reunidos para se despedirem do homem que, durante o tempo em que passou atrás das grades, transmitiu a todos a esperança de uma nova vida. Em suas explanações sobre o plano espiritual, enfatizava que o arrependimento purificava a alma. Antes de ganhar a liberdade passou a última mensagem para os seus discípulos, que estavam festejando a sua saída do inferno: "... perseverem nas orações, pois aquele que pede com fé encontra o que busca. E não esqueçam, caminhos largos nos levam a perdição e o caminho estreito nos conduz a salvação, por isso ele é mais difícil de ser trilhado, mas o oásis está no final da trilha." O cara gostava de usar frases de efeito, com material retirado dos livros e revistas que consumia vorazmente na cadeia. Os presos gostavam de pedir conselhos ao malandro, que não negava fogo e sempre soltava uma tirada: "a vida é como pedalar uma bicicleta; você só cai se parar de se movimentar.”
Ao transpor os portões da prisão, uns sete ou oito, naquela abafada manhã da pequenina cidade do interior do estado de São Paulo, Olegário olhou para o céu, respirou fundo aquele ar fresco, verdadeiramente livre, abriu os braços e se ajoelhou, gritando a plenos pulmões: "obrigado pela liberdade tão almejada meu glorioso Deus." E sua exaltação foi sincera. Mas, rapidamente recuperou seu autocontrole de vigarista escolado e percorreu com o olhar matreiro todas as direções. Teve sua atenção direcionada para um grupo de mulheres espalhafatosas, o que realmente queria ver naquela hora, após tantos anos trancafiados. Ansiava por uns momentos de luxúria ao lado daquelas gostosas, com suas minissaias provocantes, deixando a mostra aquelas pernas apetitosas que lhe aguçavam a libido... Lembrou-se de uma citação do escritor Phil Bosman: "A vida se torna uma festa quando sabemos desfrutar das coisas normais do dia a dia." Mas algo invadiu sua mente, como um fiat lux.
Veio a imagem de Verônica, sua ex-mulher. Aquela morena baixinha era mesmo uma nordestina arretada. Tinha prometido e cumprido: “se você não tomar juízo Olegário nós te deixamos de vez.” E foi o que aconteceu quando o malandro foi parar atrás das grades. Percebeu que deveria agir rapidamente para iniciar sua escalada rumo ao promissor futuro que se anunciava fora da cela. Verônica ficaria para depois. Ela tinha deixado bem claro: “se você for pego e entrar em cana eu não irei visitá-lo e nem deixarei as crianças irem até a cadeia.” Não ia desistir fácil daquele corpinho miúdo e aconchegante. Tiveram um casal de filhos. Não sabia ao certo qual a maior perda: a companheira ou os filhotes... Acabava de sair da cadeia, agraciado com o benefício de progressão da pena, após cumprir 8 longos anos em regime fechado, mais de um terço do total que devia à Justiça. Na reflexão em seus dias de cárcere chegou à conclusão de que fora melhor sua mulher e filhos ficarem longe daquele ambiente degradante onde se encontrava, apesar do seu sofrimento ter aumentado com a ausência dos seres amados. Estava consciente de que o período em que esteve na tranca sua família não passaria necessidades financeiras, pois havia realizado alguns investimentos em nome de Verônica, os quais davam uma razoável renda mensal, o bastante para cobrir as necessidades dos três entes queridos.
Nos anos que antecederam a sua prisão, Olegário aplicava diversos golpes e faturava o bastante para viver como um verdadeiro nababo. Mas o cara era um gastador descontrolado. Torrava tudo o que ganhava com seus golpes e falcatruas. Era um perdulário contumaz. O jogo e as bebedeiras com a mulherada eram uma rotina na sua vida pregressa. O pilantra sabia contar estórias, envolvendo com sua lábia todos que parassem para escutar seu vozeirão mavioso, com aquele tom especial, quase que celestial; tipo pastor com muitos anos de púlpito, conduzindo para os seus bolsos o dinheiro e objetos de valor dos incautos.
Seus truques preferidos eram o conto do bilhete premiado e o golpe da guitarra. No primeiro, se passava por um matuto que vinha do interior para a cidade grande receber o prêmio do cupom sorteado pela Loteria Federal. Na verdade o bilhete era falso, uma cópia muito bem feita do original, contendo os números anunciados do primeiro prêmio, o que poderia ser facilmente verificado nas listagens oficiais afixadas nas bancas de jornal e casas lotéricas. A vítima era escolhida dentro de uma agência bancária, logo ao sacar uma boa quantia no caixa. Ao ganhar a rua era abordada pelo golpista que pedia informações de como poderia receber o dinheiro do bilhete premiado. Nessa hora surgia um parceiro que entrava na conversa e dava a orientação para procurarem uma banca e consultarem a listagem dos prêmios.
Quando a vítima atestava no jornaleiro que o bilhete de fato tinha o número premiado e o total do que seria pago pela Caixa Econômica Federal, crescia o olho e acabava dando o dinheiro do saque em troca do bilhete, pensando em passar o Zé Mané para trás, pois a quantia do prêmio era bem maior daquela que acabara de retirar do banco. Só descobria ser o otário da história quando tentava sacar o dinheiro na Caixa e era informado que aquele pedaço de papel era falso. O segundo... Ah! Esse merece um parêntesis maior...
Certo dia os dois trapaceiros tiveram suas vidas alçadas a elite paulistana por uma ocorrência fortuita de trânsito. Tinham acabado de comprar um carro importado e foram abalroados na traseira ao pararem em um sinal (farol lá em Sampa) no bairro dos Jardins. Quem dirigia o Audi R8 que entrou na traseira do Azera que Santelmo pilotava foi o diretor financeiro do Clube Panorama, um dos principais da capital do estado. O Dr. Mario Henrique entrou com tudo na rabeta do automóvel que os pilantras haviam comprado com o fruto de seus golpes espetaculares. Os dois desceram fulos da vida. O estrago foi enorme. A lataria afundou até encostar-se às rodas de trás. Santelmo se dirigiu furioso para o infrator, que permanecia dentro do outro carro, enquanto Olegário tentava controlar o companheiro através de algumas palavras de comando: “calma! Estamos inteiros. Nada de grave nos aconteceu. Não sofremos nem um arranhão.”
− Calma o cacete! Você viu a merda que esse cara fez? Esse filho da puta barbeiro acabou com o nosso brinquedinho. Ele tem que levar umas porradas para aprender a dirigir direito.
Ao chegarem ao lado da porta do motorista perceberam que este jazia com a cabeça debruçada sobre o volante. Presumiram que o senhor havia desacordado com a trombada. Abriram a porta e tentaram acordar o sujeito. Foi quando Olegário se deu conta que o condutor devia ter sofrido um mal súbito. Pediu para Santelmo se acalmar e refletir sobre as palavras de Kobo Abe: “a liberdade não consiste só em seguir a sua própria vontade; mas às vezes também em fugir dela.” Pessoas foram se aglomerando em torno do acidente. Aos gritos, deu ordens a Santelmo para providenciar um táxi enquanto com cuidado recostava a cabeça do acidentado no espaldar do banco. A ação foi rápida e eficiente. Transferiram o Dr. Mario para um carro de praça e foram em disparada para o Hospital Sírio-Libanês.
A família do Dr. Mario foi avisada assim que ele deu entrada no hospital. Parte da equipe médica conhecia muito bem o paciente, pois fazia parte do quadro social do Panorama. Em poucos minutos começaram a chegar amigos e parentes. Passadas algumas horas a sala de espera do Sírio-Libanês já se encontrava lotada. Aproximadamente 50 pessoas se aglomeravam no local a espera de notícias. Ao cair da noite o chefe de equipe médica de cardiologia sai do Centro Cirúrgico e se dirige aos familiares. Explica a situação do hospitalizado: “ele ainda não está fora de perigo, mas a intervenção foi um sucesso. Tudo correu bem. O que proporcionou a eficiência da cirurgia foi o pronto atendimento. Se ele não tivesse sido socorrido com presteza poderíamos ter graves problemas.” Ao terminar a conversa com os familiares, procurou com o olhar os desconhecidos que haviam chegado com o seu colega de diretoria (no clube) desacordado.
Dirigiu-se a dupla e agradeceu efusivamente: “se não fosse pela ação solidária e eficiente de vocês, o meu amigo poderia não ter sobrevivido. Muito obrigado, meus jovens.” Os amigos e parentes que prestavam atenção a cada detalhe da conversa do cirurgião aplaudiram por um longo período os malandros. Após a saudação um a um foi cumprimentar os salvadores. Muitos abraços e alguns beijos distribuídos. Na ocasião os pilantras ficaram sabendo sobre a importância do socorrido na elite da sociedade paulistana. Ao saírem do hospital Olegário comentou com o amigo:
− Descobrimos o mapa da mina. Agora é só desenterrar o tesouro. Você prestou atenção no desenrolar da história que acabamos de vivenciar? O presidente do Panorama, um dos clubes mais chiques e fechados do país, nos convidou para um almoço de confraternização assim que o tal Mario receber alta, pois querem nos homenagear. Em pensar que você queria baixar a porrada no velhote que arrebentou o nosso Azera. Esse local só tem ricaço. Vamos lavar a égua Santelmo!
Passados aproximadamente dois meses os pilantras foram convidados para a homenagem. O almoço foi lauto. Muita comida boa, com destaques para as lagostas e demais frutos do mar, acompanhados de bons vinhos frisantes. O Dr. Mario fez um belo discurso de agradecimento aos dois novos amigos ao entregar as comendas de trabalhos solidários, enfatizando a citação de Padre Antônio Vieira: “é bom ser importante, mas é muito importante ser bom.” A partir daquele dia os salafrários passaram a ter passe livre nas dependências do clube segundo uma resolução assinada pelo presidente Carlos Magno.
Os dias foram avançando e os dois golpistas só colhiam bons frutos na convivência com os bacanas. Enquanto isso, a personalidade dos associados era estudada. Acabaram por direcionar as suas atenções para dois personagens: Pepe e Marcio Costa, proprietários de uma rede de supermercados e uma empresa de transporte coletivo. Os dois empresários eram primos e sócios. A escolha se deu devido a ganância dos Costa, que acabaram envolvidos em uma trama ardilosa e eficaz, urdida pelos estelionatários.
Olegário investiu alto. Inúmeras vezes os sócios foram convidados para jantares em restaurantes finos e noitadas em clubes prives, sendo que em algumas ocasiões os primos levavam alguns amigos à tira colo. O golpista não permitia que as despesas fossem rachadas. Pagava tudo do próprio bolso e ainda dava polpudas gorjetas para os garçons, manobristas e maître, na base dos 100 reais. No início os empresários relutavam contra o anfitrião arcar sozinho com as despesas. Depois foram se acostumando com as excentricidades do novo amigo. Ficavam intrigados com os pagamentos que sempre eram executados com notas novinhas de 100. Estavam com a pulga atrás da orelha. O cara nunca usava cheques ou cartões. Muito estranho.
O golpista fazia um tipo caladão. “Um cara legal, mas difícil penetrar nos seus segredos...”, como dizia Pepe. Já Santelmo fazia o estilo falastrão. “Falava pelos cotovelos” na opinião de Marcio. Os primos investiram nele. O enchiam de perguntas. O plano dos trapaceiros estava decolando. Os empresários levantaram que Olegário nadava no dinheiro e que não dava a mínima para o vil metal. Segundo conseguiram apurar, ele era lobista. Estava ligado a políticos de destaques: vereadores, prefeitos, deputados, senadores e até ministros. Cuidava do caixa dois das campanhas eleitorais. Era um cara confiável. Essas qualificações só fizeram aumentar a curiosidade dos Costa.
Santelmo soltava a tramela: “acho que o meu amigo está na posição errada, pois ele não dá a mínima para o dinheiro. Não investe e gasta tudo com bobagens; tipo essas farras que fazemos juntos. Se fosse mais bem assessorado poderia ganhar milhões por mês. Era só ter uns dois ou três investidores de peso.” Explanava que bons sócios o fariam quintuplicar os ganhos com suas atividades de lobista. “E o que não falta nesse Brasil é gente querendo se dar bem, não é mesmo?”
Pepe e Marcio já tinham muito dinheiro, mas quanto mais se tem mais se quer, não é mesmo? Pois bem, os primos gananciosos em conversa entre eles chegaram à conclusão de que Olegário era um otário que estava com sorte. Resolveram que iriam se associar ao sortudo. Poderiam até convidar mais uns amigos para a empreitada e colocar novos projetos em pauta. O importante era saberem mais sobre o tal esquema com os políticos, pois com essa raça não se brinca. “Vamos continuar dando linha na pipa do Santelmo. O cara é bonachão e fala que nem papagaio” comentou Pepe para o sócio.
Os primos estavam pegando um bronze na beira da piscina do Panorama, na companhia de Santelmo, e insistiam em saber mais detalhes sobre as tretas políticas, enquanto o parceiro de Olegário fingia estar escorregando da conversa. Até que em certo momento disse:
− Tá bem gente! Vou cantar a pedra pra vocês. Mas pelo amor de Deus, isso é segredo de Estado. O cara tem funcionários técnico-administrativos do Banco Central e da Casa da Moeda na manga do paletó. Eles são responsáveis pelo cadastramento das séries das notas que são recolhidas por estarem danificadas ou muito velhas. As notas nessas condições são incineradas e outras colocadas em circulação. A recolocação é feita pela Casa da Moeda, cujo presidente é indicação do Senador ao qual o meu amigo está umbilicalmente ligado. Quem é que cuida da distribuição da mercadoria no mercado? Pronto: falei!
“Limpá-las! Como assim?” Perguntou Pepe com ares de espanto. “O Senador exige que Olegário troque as notas por outras que estejam circulando normalmente no mercado, a fim de dissipar qualquer vínculo com a turma dele dentro do Banco e da Casa.” Após sorver um bom gole de cerveja, bem geladinha como era do seu agrado, Santelmo complementou: “meu amigo têm alguns contatos quentes no meio empresarial do comércio que com o maior prazer trocam duas notas rodadas pelas novinhas do Senador, tipo: os caras dão cinco milhões e nós voltamos 10. Todo mundo sai ganhando nessa história.”
Os sócios ficaram embasbacados. Marcio sacou que Santelmo se colocou também no negócio ao dizer: “nós voltamos 10”. Os dois ficaram visivelmente interessados na maracutaia, afinal tinham uma empresa de ônibus que faturava milhões em notas desgastadas. Evidente que queriam entrar na parada, e tanto fizeram que conseguiram arrancar do falastrão que ele iria levar a proposta deles para Olegário.
Um almoço foi agendado. No dia da reunião Olegário fez questão de chegar por volta de 30 minutos atrasado; não queria demonstrar o seu interesse em tal evento. Quando pisou no restaurante percebeu que os primos estavam bem excitados. Nem tanto pelas duas doses e meia de uísque 12 anos que haviam ingerido, mas com a possibilidade de aumentarem seus lucros com uma jogada por baixo dos panos. Só teve o trabalho de confirmar a estória que Santelmo tinha contado aos gananciosos empresários, enquanto degustava um cabrito assado ao molho de hortelã, acompanhado de arroz com brócolis, batatas coradas e um honesto Malbec. Ficou acertado que no início a investida seria de 5 milhões de reais. A grana já estava separada e os caras pensavam em colocar a mão numa bolada e dobrarem o investimento. Receberam um endereço de um galpão, localizado na Zona Sul de São Paulo, com a recomendação de chegarem pontualmente às 13h50 do dia seguinte. Uma van os aguardaria com os 10 milhões empacotados em embalagens do Banco Central. Não poderiam se atrasar ou se adiantar demais, pois a espera seria apenas de 10 minutos. Se o prazo não fosse respeitado o negócio seria desfeito. O utilitário só poderia ficar até às 14 horas, por motivos de segurança.
No dia seguinte, precisamente às 13h52, Olegário entrou na rua do tal galpão dirigindo uma van branca com um adesivo do logotipo do Banco Central, tendo ao lado o parceiro de todas as horas. Estacionou a caminhonete bem na porta do galpão. Santelmo saltou do banco do carona e abriu o pesado portão, após destrancar dois enormes cadeados e retirar uma grossa corrente que os envolvia. Nesse momento percebeu um furgão que estava estacionado do outro lado da rua colocar seta para sair. Nele estavam os empresários. Os carros entraram no galpão. Primeiro a van e depois o furgão. Antes mesmo de Olegário descer do utilitário Santelmo já havia aberto a porta traseira. Márcio e Pepe perceberam os vários pacotes com notas novinhas de 100 reais, embrulhados em plástico resistente e transparente. Os olhos dos primos cintilavam como cristais. Quando se aproximaram do veículo abarrotado de verdinhas ouviu-se um barulho estridente de sirene.
Santelmo ainda estava lutando para fechar a pesada porta do galpão quando duas viaturas da Polícia Federal frearam bruscamente na sua frente. Um policial de cabelos grisalhos e num terno de bom corte foi anunciando: “vocês estão presos em flagrante delito por fraude financeira e falsificação de dinheiro.” Em seguida outros sete policiais, todos com coletes a prova de bala algemaram os quatro espertinhos. O cara que deu a voz de prisão se identificou como Delegado Federal: “a situação é crítica. Estamos há vários meses monitorando vocês. Temos gravações dos encontros, jantares e almoços onde realizavam as suas reuniões para tratarem da troca do dinheiro quente pelo frio.” A expressão dos detidos era de pânico. O Dr. Paranhos continuou: “não tem saída para vocês. A prisão em flagrante é inevitável. Vocês serão levados imediatamente para a sede da PF.”
Olegário educadamente pediu a palavra e foi autorizado a falar. “Dr. Não há necessidade de nos deter. Somos pessoas de bem. Nossos familiares e amigos irão ficar arrasados com a nossa exposição no noticiário.” Paranhos interrompeu a lengalenga: “pensassem duas vezes antes de cometer tais delitos.” Olegário se desculpou com muita polidez e pediu para continuar sua narrativa, no que foi atendido. “Pois bem, Dr. Delegado, a nossa prisão será um terrível golpe nos nossos familiares. Por favor, deve haver um jeito melhor para lidarmos com essa situação embaraçosa. Nos dê uma oportunidade...”. O delegado coçou o queixo e mandou: “onde o senhor está querendo chegar?” O trambiqueiro falante se aproximou do Dr. Paranhos e disse baixinho: “podemos conversar reservadamente?” Recebeu como resposta um aceno de cabeça. Os dois se afastaram dos demais e foram para os fundos do galpão.
− Sei que estamos em uma situação periclitante. Não há saída para esse imbróglio. Se formos presos iremos gastar um dinheirão com advogados. Essa corja não vale nada. São piores do que os bandidos. Assaltam à luz do dia sob os auspícios da Lei. Faço a seguinte proposta: tem muito dinheiro nesses furgões. Não é dinheiro falsificado, mas sim obtido de forma fraudulenta. Podemos entrar em um acordo? Sei que o senhor terá que dividir a grana com os membros da sua equipe. Mas se o que tiver aqui não for suficiente poderemos dar um jeito.
Paranhos nada disse. Pegou o falastrão pelo braço e o levou de volta a corja. Afastou-se do grupo e chamou seus homens. Estavam em oito. Só um ficou com os detidos sob a mira da metralhadora. Santelmo soltou essa para o amigo: “acho que você conseguiu mexer com a cabeça do delegado. Ele deve estar sonhando em colocar a mão nessa mufunfa”. Recebeu como resposta: “ora Santelmo! O dinheiro não é nada nessa hora. O importante é a nossa reputação. Temos que escapar dessa. Só assim poderemos conseguir mais grana para comprar a nossa liberdade.”
Os primos estavam aterrorizados. Na cabeça deles se passava um filme. Imagina! Serem presos e aparecerem no noticiário nacional. Seus familiares, amigos, conhecidos e clientes, vendo aquelas cenas vexatórias. Pepe não aquentando mais se aproxima de Olegário e diz: “ofereça também os milhões que estão no furgão. Talvez o delegado resolva o nosso problema mais rápido.” O 171 agradeceu a oferta do empresário: “obrigado amigo. Pode ter certeza que você terá o seu dinheiro de volta se escaparmos dessa situação embaraçosa.”
Olegário chamou o delegado, que ainda estava reunido com os seus agentes, em um canto e comunicou que ele poderia ficar com mais 5 milhões que estavam no outro veículo. O total atingia a quantia de 15 milhões. A autoridade balançou com a proposta: “está difícil convencer meus homens, mas acredito que com esse novo acréscimo penso que poderemos chegar a um bom termo”.
Os quatro trapalhões livraram-se da prisão e das possíveis situações constrangedoras a que seriam expostos na imprensa. Olegário garantiu aos empresários que em poucos dias teriam de volta toda a grana. Despediram-se com apertos de mãos e foram para lados opostos da cidade. Os trambiqueiros foram para um sítio alugado por eles na periferia. Quando lá chegaram encontraram os falsos policiais federais retirando os adesivos dos carros. Santelmo pegou o pacote que havia sido aberto contendo maços de notas de 100 reais. Mas apenas nesse as notas eram verdadeiras. O restante não passava de papel cortado no tamanho das notas. Quando o pacote foi aberto na frente dos empresários na chegada ao galpão, estes imaginaram que todas as embalagens continham dinheiro de verdade. Ledo engano. Daí veio o suposto flagrante com os falsos agentes da lei, que levaram 1 milhão para dividir entre os dez. Os caras eram uns vigaristas que quase sempre participavam dos golpes da dupla de estelionatários. Olegário e Santelmo, após deduzirem o investimento realizado na operação, na base de 200 mil, dividiram entre si três milhões e oitocentos mil reais.
Santelmo sempre foi mais comedido com os gastos, diferente do parceiro, que era um perdulário. Mas após o golpe nos empresários gananciosos convenceu Olegário a fazer um investimento em nome da esposa, Verônica. E continuaram a sua trajetória de golpes. Adquiriram várias máquinas chupa-cabra - aparelhos instalados nas linhas das máquinas de cartões de crédito e débito para capturar os registros de dados dos clientes, inclusive as senhas. Desta forma os malandros conseguiram arrecadar milhões no comércio, onde possuíam diversos contatos que facilitaram a instalações dos apetrechos em supermercados, postos de gasolina, bares e restaurantes.
A vida corria tranquila e com altos lucros para os vigaristas que estiveram um tempo no Paraná e depois no Mato Grosso do Sul, para deixarem esfriar as tensões geradas pelo golpe nos associados do Clube Panorama. Por lá fizeram negócios adquirindo terras. Continuavam engambelando Marcio e Pepe com o papo de que a situação estava muito difícil e que o delegado pedia sempre mais grana e por isso não tinham podido honrar o compromisso em devolver os 5 milhões dos primos. Depois de alguns meses retornam a São Paulo, mas não apareceram no clube e nem fizeram contato com as antigas amizades do Panorama.
Um dia a casa caiu. Marcaram um encontro com um malandro para fazerem uma entrega de boa quantidade de cartões. Mas a parada deu errado. Tiras os aguardavam nas proximidades do local combinado para a operação. Ao perceberem a presença dos policiais correram cada um para um lado da praça. Os canas também se dividiram no encalço dos pilantras. Olegário conseguiu abrir certa vantagem sobre os seus perseguidores e entrou em um antigo cinema e se dirigiu até a bilheteria para comprar a entrada. Um homem de terno com um livro na mão disse que não precisava pagar. Achou aquilo esquisito, mas não tinha tempo para indagar ao gentil senhor.
Ao adentrar na sala de exibição, percebeu o porquê da gratuidade: ali agora funcionava uma igreja. A contra gosto sentou na terceira fila de um auditório enorme que tinha aproximadamente 23 fileiras de cadeiras com um grande corredor dividindo ao meio o local. Onde deveria estar a tela se achava um homem de terno cinza gritando e dando ordens a alguém para se afastar do corpo de uma mulher que estava cambaleando na frente do pregador. Olegário se encolhia na poltrona para evitar ser reconhecido pelos policiais que o perseguiam. A igreja não estava cheia, mas havia pra mais de 100 pessoas no recinto. Permaneceu por mais de uma hora naquele espaço, acompanhando o culto de exorcismo. Chegou mesmo a se desligar da sua fuga e deu um salto quando o homem de cinza, ao terminar uma oração que fazia com os olhos fechados, apontou o dedo em riste na sua direção e gritou: VOCÊ! DEUS MANDA LHE DIZER QUE TEM UM PROPÓSITO EM SUA VIDA. VOCÊ TEM UMA GRANDE MISSÃO A CUMPRIR E VAI SE RENOVAR EM ESPÍRITO.
Logo após o pastor terminar sua fala, diversos fiéis vieram cumprimentar Olegário e parabenizá-lo por ser o escolhido naquele culto. Não demorou muito e as atividades evangélicas se encerraram. Em poucos minutos o antigo cinema estava vazio e o pessoal da limpeza iniciava suas atividades. O trambiqueiro continuou ali por mais alguns poucos minutos, tentando ordenar as ideias... Será que aquela fala final do culto era mesmo para ele? Por que as pessoas foram apertar a sua mão e dar graças? Ainda pensando sobre esses e outros tantos assuntos, se levantou e saiu lentamente do recinto. Ao chegar à porta principal do templo, olhou atentamente para ambos os lados da rua. Certificou-se que não havia nada suspeito. Sentiu-se bem e respirou com alívio. Tinha se dado bem. No mesmo instante pensou em Santelmo. Torcia para que o amigo também tivesse escapado ileso. Começou sua caminhada rumo à estação do metro. Inicialmente em passos curtos e ao ganhar confiança foi aumentando as passadas, quando levou uma gravata de alguém que estava as suas costas. A pegada era firme. Fez força para se desvencilhar do opressor. Em segundos, surge outro homem à sua frente e lhe aplica um par de algemas. Eram dois tiras que ficaram de tocaia próximo ao ex-cine, pois haviam coletado informações que o larápio buscou refúgio naquele local. Os caras não quiseram saber de papo com o malandro e foram logo levando o infeliz para o Distrito Policial.
Verônica cumpriu sua promessa: nunca mais quis saber do 171. Não foi sequer um dia visitar o pilantra na tranca. Mas agora era vida nova. Os truques do passado estavam ultrapassados. Descobriu uma nova modalidade de estelionato sem risco. Durante suas férias na penitenciária, gostava de pensar assim, adquiriu conhecimentos e muita prática para aplicar os novos trambiques. Tinha certeza de que seu faturamento aumentaria em muitos cifrões, graças ao seu esforço e aplicação. Na cadeia ficou sabendo que Santelmo havia conseguido driblar os seus perseguidores e escapara de ser preso.
No dia da sua prisão, ocorreu um fato que mexeu profundamente com a psique do trambiqueiro. Quando foi se refugiar no cinema que acabou descobrindo ser uma igreja evangélica, onde ocorria um culto e ao final o pastor que ministrava o ato religioso dirigiu-se a ele transmitindo uma mensagem supostamente enviada por Deus. Na época ficou encafifado com aquela frase: Deus manda dizer que tem um propósito em sua vida. Você tem uma grande missão a cumprir e vai se renovar em espírito. Aquilo não fazia sentido. “Qual o propósito; que missão seria essa e como o espírito de um ser humano pode se renovar?” Não encontrava respostas para tais indagações. Tudo o que fazia em sua vida tinha uma finalidade: levar vantagem em tudo! Mesmo que à custa dos outros. O mal fazia parte da sua jornada terrena. Estava instalado na sua alma. Como Deus poderia ter uma missão para uma cara dessa espécie? Mas seus questionamentos foram respondidos ao longo da sua nova jornada, que teve início na sua detenção. Começou a ler a Bíblia Sagrada com a intenção de aplicar golpes nos detentos.
Olegário tinha o dom para persuadir e convencer as pessoas. Aprimorou suas técnicas na prisão, ao acompanhar os cultos evangélicos. Lançava mão de tudo aquilo que lia e que falava de Deus e de seu amado filho: “Jesus ama os corações alegres e as almas sorridentes”. Os ouvintes deliravam com as suas explanações, mesmo que a autoria da frase não fosse de um evangélico, mas sim de uma fervorosa serva do Senhor, Santa Teresa d'Ávila. Apimentou mais as pregações, empregando recursos cênicos, algo que já dominava na sua vida marginal. Em certos momentos, na realização dos cultos que passou a ministrar na cadeia, fazia os detentos irromperem em lágrimas, num verdadeiro pranto de arrependimento pelos crimes que cometeram ao longo da jornada terrena. O malandro ganhou o respeito de todos os presos. Era admirado e considerado como o papa das escrituras sagradas nos presídios do estado de São Paulo. Ficou conhecido como Pastor Olegário, aquele que sabia tudo sobre os trechos bíblicos do Velho Testamento. Falava em Deus com autoridade e domínio, passando para os seguidores a certeza que era um enviado divino. Em diversas ocasiões falava em línguas estranhas, o que deixava os espectadores perplexos, deslumbrados com a sua versatilidade. Sabia explorar o momento exato em que deveria levar a sua plateia ao clímax da pregação. Era o momento de maior comoção e nessa hora atuava sobre os presos que se mostravam mais impressionados com suas peripécias. Aos gritos e com a autoridade de um impoluto messias chamava por Deus e pedia graças ao Glorioso para algum incauto, onde vislumbrava possibilidade de ganhos. Muitas vezes profetizou e acertou a absolvição de alguns colegas, assim como também anunciava as vitórias no desenrolar dos processos.
O pastor era procurado, com certa constância, por seus sábios conselhos, onde sempre apresentava um quadro positivo e que satisfazia o rumo das atitudes dos mais inseguros, aqueles que ainda não estavam certos de entregarem suas almas a Deus. Todas as ações do vigarista refletiam com grande intensidade na população carcerária do estado de São Paulo. Suas orações estavam atingindo, em cheio, as almas abandonadas na penitenciária de segurança máxima, e a cada culto que realizava mais adeptos ganhava. Quase todos diziam que Olegário era um ser iluminado nos cultos de libertação e cura do mal. O cara dava um verdadeiro show, comandando atos de exorcismo, onde dizia expulsar o Diabo do corpo de qualquer marginal. O trapaceiro estudava todos os tiques nervosos dos participantes das suas armações evangélicas e percebia com facilidade a tendência de certos presos em serem induzidos através de uma leve hipnose, a de grau 1, técnica que sabia manipular com segurança e eficiência. Com gritos, sempre em nome de Deus e de Jesus, ordenava que o Diabo e suas legiões de demônios deixassem aquele corpo que estava exorcizando. Conseguia a proeza de exorcizar não só o escolhido, mas também outros delinquentes que estavam na plateia, que acabavam atingidos por um furor histérico e acometidos de tremores convulsivos, desabando sobre o chão, onde se debatiam freneticamente. Após os cultos os presos comentavam as façanhas do pastor e acabavam realçando os feitos milagrosos que presenciaram. Muitas vezes se ouvia no limitado entendimento desses pobres abandonados pela sociedade: “compadre, foi brabo hoje no culto. O pastor distribuiu muita bolacha nos Demônios, que saíram vuados do pedaço”.
Com essa energia toda, Olegário se notabilizou dentro do sistema penal paulista e acabou por chamar a atenção de alguns diretores de presídios e de vários agentes penitenciários, que acabaram, assim como muitos condenados, se convertendo ao cristianismo evangélico. Os presos de outros municípios reivindicavam constantemente às autoridades a presença do pastor exorcista para ministrar cultos em seus estabelecimentos penais. O trapaceiro recebia a autorização para cumprir tal missão, quando era devidamente escoltado para realizar os seus espetáculos de cura e libertação do mal. Um diretor de presídio, onde estavam quase que mil detentos, relutou durante meses o quanto pode para trazer o pastor que queria ministrar um culto na sua cadeia, indeferindo, seguidamente, as reivindicações daqueles que pretendiam ter as bênçãos do iluminado. Estava constatado nas estatísticas oficiais do sistema carcerário paulista, que nos locais em que Olegário presidia seus cultos diminuíam, e muito, as ações criminosas e disciplinares no interior das cadeias. Sendo assim, o diretor Malheiros acabou recebendo ordens do Secretário de Segurança do estado para dar passagem ao pastor exorcista.
O diretor era um perfeito ditador e fazia de tudo para atrapalhar a estadia dos condenados na penitenciária que comandava. Era ateu, mas mandou pintar uma frase de São José Marello em uma das paredes do pátio central: "O barulho não faz bem, o bem não faz barulho." Dificultava ao máximo a vida dos detentos que estavam sob o seu comando. "Sua prisão", como gostava de se referir ao seu trabalho, era a instituição penal que registrava o maior número de infrações disciplinares. A vida naquele lugar era um inferno, para os detentos e agentes. Quase todo santo dia havia uma quizumba qualquer. Os nervos de todos andavam a flor da pele. No dia previsto para a realização do culto na unidade dirigida pelo doutor Malheiros, como gostava de ser chamado, o cara reuniu os agentes e mandou:
− Olha não gosto dessa palhaçada de culto religioso. Estou fazendo isso obrigado pelo Secretário de Segurança. Estes vagabundos não têm o que fazer e ficam criando trabalho pra gente. Tão pensando que Jesus vai querer limpar a barra deles. A alma desses filhos da puta pertence é ao Diabo que os carregue. Quero que vocês fiquem de olho nesse pastorzinho de merda e se ele der qualquer vacilo, vamos meter a porrada nele, sem dó nem piedade.
O pastor ao chegar ao pátio levantou as mãos para o alto e gritou: "a paz de Deus esteja em seus corações irmãos". Em seguida entraram no recinto Malheiros com alguns agentes casca grossa. No rosto do diretor estava estampado o seu desagrado para com o evento. Colocou-se encostado em uma das paredes, com cara de poucos amigos, cruzou os braços e disse bem alto: "vocês têm 20 minutos para terminar com esse teatro. Vou disparar o meu cronômetro agora”. Dito e feito. Olegário teve uma intuição. Iniciou a sua pregação com uma frase de efeito, pois sabia que iria mexer com os nervos do diretor. "Não existe liberdade completa para o indivíduo enquanto não existir liberdade para todos." Malheiros fulminou o pregador com um olhar raivoso. Já ia partir pra cima do pastor quando este soltou o vozeirão:
− Irmãos, nós estamos cerceados da nossa liberdade física porque nos desviamos do verdadeiro caminho da justiça, o caminho divino. Nós pecamos e devemos pagar por tudo aquilo que fizemos de errado. Para isso, é necessário libertarmos nossos corações das amarguras e sofrimentos, nos entregando a Jesus. Ao proceder dessa maneira estaremos nos tornando verdadeiramente livres para vivermos o amor em Cristo. - Falou as frases de olhos fechados e punhos cerrados.
Quando encarou o diretor, percebeu que o cara estava perturbado. Aproveitou para colocar mais lenha na fogueira: "A esperança não é um sonho, mas um modo de transformar os sonhos em realidade", já dizia o sábio Suenens. "Estou aqui, enviado por nosso Pai, para libertar a todos do pesadelo em que vivem e trazer a liberdade para os seus corações sedentos de amor."
Malheiros se coçava para não por fim naquela palhaçada. Os agentes se entreolhavam preocupados. Na visão deles, a qualquer momento o diretor iria explodir. Olegário continuou com sua pregação: "em primeiro lugar devemos agradecer a Deus por nos permitir estar aqui reunidos. Em segundo lugar devemos agradecer ao doutor Malheiros que nos deu autorização para realizar este culto.” O diretor não aguentando mais, se virou para um agente que estava ao seu lado e soltou: "esse pilantra tem que agradecer é ao Secretário de Segurança; por mim, essa armação nunca seria realizada na minha prisão.” O pastor captava a insatisfação do diretor, mas percebeu que a raiva estava se dissipando do olhar de Malheiros. Era chegada à hora de representar com mais fervor.
− Eu sempre te amarei Senhor, pois tu és minha fortaleza, meu verdadeiro libertador. Oh, meu Deus!!! Meu guerreiro, em quem eu confio o meu escudo, as minhas armas, a força da minha salvação, meu refúgio, minha morada. Invocarei o nome do meu Senhor sempre que estiver em perigo, em conflito ou com medo, pois é dele que vem a Luz que ilumina a minha coragem e a minha vida. Sempre que possível devemos louvar a Deus, assim estaremos livres de nossos inimigos.
A ladainha foi ficando cada vez mais fervorosa. A exaltação a Deus tomou conta do ambiente. Todos estavam comovidos, tocados pelas fortes palavras do pasto, que lançou mais uma pérola: “a fé é um pulo no escuro na certeza de sermos amparados pela mão protetora de Deus.” Só omitiu da plateia que a frase pertencia a um frei católico, Anselmo Fracasso.
O clima de euforia contaminou a todos. Um dos presos, entre soluços e solavancos, se debatia no chão e proferia palavras desconexas. Olegário entabulava um diálogo com o sujeito naquela língua estranha e solicitava aos presentes que intensificassem as orações. Todos oravam cada vez mais altos. Outro homem desabou no chão. Formou-se um círculo em torno do infeliz. O diretor, que a essa altura já estava tonto, se encaminhou para uma das portas de saída do pátio, mas antes que pudesse alcançá-la, também se espatifou no cimento do piso, se debatendo e contorcendo em convulsões. O culto virou um verdadeiro pandemônio. Olegário correu para junto de Malheiros. Um dos agentes solicitou, por rádio, uma ambulância. O guardinha estava desorientado. O pastor, com voz branda, mas firme, disse para o garoto cancelar a solicitação, pois o problema era espiritual, e ele iria curar o sujeito em minutos. Imediatamente colocou a mão sobre a testa do diretor e começou a gritar numa língua que ainda não havia sido falada naquele culto. Os sons saiam guturais, lentos e cadenciados. Malheiros, ainda se debatendo, respondia no mesmo idioma. Arrematou com a seguinte citação: Lc 15, 23b-24a. “Vamos comer e nos alegrar, porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado.” Passaram-se não mais do que 10 minutos até que a serenidade voltasse a reinar no recinto. A expressão do diretor era outra. O cara já sorria. Um sorriso leve, como de criança quando ganha um mimo. "O que fizestes comigo?"
− Nada fiz com você, mas Deus o libertou para sempre de uma força maligna que dominava a sua pobre alma. Agora está tudo bem. Mas não esqueça nunca do que conversamos na língua dos anjos: o amor se demonstra na convivência e não na solidão. Quem serve de má vontade, demonstra falta de amor.
As frases que acabava de soltar também eram de autoria do Frei Anselmo Fracasso, que o pastor tinha lido há poucos dias num pequeno livro editado pela Vozes. Mas caíram como um tapa de luva de pelica na cara do diretor. A partir daquele dia, o doutor Malheiros mudou da água para o bom vinho e se tornou um cristão fervoroso. Passou a ser amável com todos, inclusive os detentos. Aos poucos, o pastor ia conseguindo penetrar nos corações mais empedernidos. Ganhou a confiança dos presos de todas as facções criminosas, sendo que aqueles que tinham uma condição financeira melhor passaram a contribuir com dízimos provenientes das ações criminosas que eram realizadas por suas quadrilhas. Olegário descobriu um novo e rentável filão de onde poderia subtrair boas vantagens. Seu plano era incutir na cabeça dos condenados que conseguiria, junto ao Todo Poderoso, o perdão pelos pecados anteriormente cometidos. O vigarista passava a comercializar sutilmente estas indulgências, coletando todo o tipo de coisas valiosas, como: joias, propriedades e, principalmente, dinheiro. Muito dinheiro.
Com naturalidade, o pastor acabou assumindo, no olhar de quase todos os presidiários, o papel de grande interlocutor diante de Deus. Não cansava de propagar aos quatro cantos: "a fé, o arrependimento e a caridade são o passaporte para a salvação da alma. Todos aqueles que fizerem por merecer, o Senhor será tolerante e irá reservar um lugar no seu reino para o pecador.” Foi assim que o malandro se tornou o grande benemérito de vários chefões do tráfico que se encontravam nas gaiolas. Um dos marginais mais poderosos de São Paulo era Bodinho, dono do tráfico na populosa favela Mata Sete. O cara se tornou um apaixonado e assíduo frequentador dos cultos ministrados por Olegário, acabando por se converter ao Evangelho. O chefão se tornou fã do pastor e quando soube que este seria solto em breve, por força de uma condicional, deu ordens para que os seus homens, que estavam no comando da Mata Sete, patrocinassem todas as despesas do ex-detento, inclusive construindo uma igreja, com casa anexa. Tudo foi feito no máximo segredo, pois o traficante queria fazer uma surpresa ao amado pregador da palavra de Deus. Dois dias antes de ganhar a liberdade Olegário recebeu as chaves da igreja e de sua nova residência das mãos de Bodinho, que falou:
− Pastor, eu fiz muitas coisas erradas naquela comunidade. Muita gente sofreu devido ao meu descontrole e eu gostaria de me redimir diante de Deus. Quando o senhor cruzar o último portão da penitenciária, vários evangélicos da Mata Sete estarão lhe aguardando para levá-lo a igreja que mandei construir em sua homenagem. Só te peço um favor: abençoe a minha comunidade, a querida Sueli (a sua número um) e os meus homens. Já dei ordem para que todos frequentem a sua igreja.
O vigarista chegou a chorar de emoção, abraçando com força o traficante. Cena que fez com que vários presos cascudos deixassem as lágrimas rolar face abaixo. Coisa de cinema. Lágrimas só corriam do seu rosto em momentos mágicos como este ou quando pensava em Verônica, a sua ex. Mas ele tomava o maior cuidado e só chorava no leito de sua cela, com a coberta puxada até as orelhas. A falta da companheira e dos filhos, nesses 8 anos de confinamento, haviam torturado a sua alma. Teve muito tempo para recordar os momentos maravilhosos em família. Como pudera deixar aquilo tudo se esvair? Era sua culpa, sua máxima culpa... Mas iria arranjar um jeito de reparar esse terrível equívoco em sua vida. Ah se ia!
Santelmo sempre foi o parceiro predileto de Olegário, na maioria dos golpes. O vigarista esteve envolvido, participando ativamente das falcatruas. Todos que conheciam a dupla, principalmente os camaradas das rodas de malandragem, afirmavam que eram unha e carne. Entendiam-se com perfeição, pelos gestos e olhares, formando uma sintonia fina para aplicarem suas traquinagens. Suas ações delituosas eram realizadas com harmonia, assim conseguiam ludibriar as suas vítimas com sucesso e eficiência. É bem verdade que no último golpe que tentaram dar, Olegário acabou preso por uma dupla de policiais civis, que já estava a tempo na cola dos pilantras. Santelmo conseguiu “se evadir”, como constava no boletim de ocorrência: “o segundo elemento não foi identificado.” Apesar de tomar muito sopapo e de ficar no pau-de-arara, o parceiro não entregou o amigo. Durante todo o tempo em que esteve preso, Olegário não recebeu sequer uma visita do cúmplice. Era o medo de ser reconhecido como comparsa do agora pastor.
Mesmo não indo visitar o parceiro na prisão, Santelmo não deixou o amigo abandonado, chegando a pagar alguns advogados e principalmente mulheres, para fazerem visitas íntimas ao companheiro de traquinagens. De um tempo para cá o amigo pediu o cancelamento da ida da mulherada. “Uma pena”, pensou Santelmo; “será que o meu chapa mudou de lado? Mas deixa pra lá, a prisão é mesmo uma fábrica de loucos. Esse negócio de religião... Sei não...” Bastava o agora pastor Olegário necessitar de alguma coisa que o amigo em liberdade providenciava. Geralmente as solicitações eram para atender os fiéis. Podia ser a coisa mais estapafúrdia ou difícil de ser conseguida, não importava o tamanho do pepino, que Santelmo descascava. No último ano da tranca Olegário encomendou 500 bíblias. O fiel escudeiro providenciou, em uma editora especializada, um material de fino acabamento. O amigo tinha enfatizado ao fazer a solicitação: “vou empregar um pensamento de Sêneca, grande filósofo grego. ‘Dar um livro a alguém não é apenas uma gentileza, é um elogio.’ Esse será um presente que nos trará um excelente retorno...” Foi uma grana alta o que pagou na encomenda, mas Santelmo não discutiu, quitou à vista e mandou entregar na penitenciária. O golpista gostava de atender qualquer pedido do amigo trancafiado. Essas ações o faziam se sentir menos culpado por estar fora das grades, graças a postura firme do parceiro que não cedeu às porradas, na ocasião da prisão, e aguentou calado o cumprimento do primeiro terço da pena. O cara era firmeza, não tinha espaço no seu caráter para a delação. Santelmo sempre agradecia a todos os santos a postura do companheiro. Saravá!!!
Quando os advogados avisaram que a condicional ia mesmo sair, o malandro, que estava em liberdade, preparou uma surpresa para o parceiro prestes a ganhar as ruas. Escolheu três belas prostitutas: uma loura, uma morena e uma mulata de fechar o comércio, para recepcionarem o amigo. Todas lindas, tipo atriz de filme pornô de primeira classe. O que elas tinham em comum: maravilhosas pernas torneadas e bundas arredondadas. Coisa fina. Duas foram escolhidas em inferninhos que Olegário gostava de frequentar quando não estava vendo o sol nascer redondo. A loura foi um achado seu. Conheceu a deusa quando andou aplicando uns golpes em Londrina, no Paraná, enquanto o parceiro preferido tirava seus dias de cana dura. Santelmo queria mostrar gratidão ao amigo. Sabia da paixão do cara pela ex e torcia para que as gostosas dessem conta do recado. Pensava com os seus botões: “por essas e por outras que nunca quis casar. Mulher de aliança é chave de cadeia.”
− Meninas, vocês vão ter muito trabalho hoje, mas vou recompensar a labuta com a devida atenção que o caso merece. Meu amigo está saindo da cadeia, depois de passar um longo período vendo o sol nascer quadrado. Ficou 8 anos sem trocar o óleo. Façam uma verdadeira revisão geral naquele depravado.
As mulheres deram garantia ao malandro que o serviço seria de primeiríssima classe. Santelmo tinha quase certeza do sucesso, bastava olhar para aqueles pares de coxas exuberantes, envolvidos naquelas minissaias provocantes. Verdadeira salada de frutas: melancia, melão, pera... Como a mídia estava classificando a mulherada naqueles tempos.
Olegário ainda se encontrava ajoelhado próximo à entrada principal do presídio agradecendo a Deus pela liberdade, e Santelmo olhava a cena sem entender nada, matutando com os seus botões: “as pressões na prisão devem ter abalado às estruturas psicológicas do parceiro... O cara está meio matusquela. Será que o quadro é irreversível?!? Seria uma pena... Era um chapa tão talentoso”. O maior vigarista que conheceu durante a sua longa escalada no crime. Criativo e genial, sempre bolando novos golpes e jogadas. Ganhava dinheiro fácil. Sabia como ninguém cativar as pessoas. Era mestre em dar nó em pingo d'água... Sem ele ia ser muito difícil continuar na estrada dos cambalachos. Os últimos 5 anos foram duros. Pouca grana e muito dinheiro rolando pelos ralos, para pagar propina aos meganhas... Mesmo confuso, fez sinal para as meninas se aproximarem do parceiro. Elas obedeceram e foram logo agarrando o pastor, na tentativa de levá-lo até um carro de aluguel que estava a poucos metros de distância. A intenção do bando era levar Olegário para um motel e acabar com ele. As putas começaram a gritar o nome do pastor, mas foram surpreendidas com urros histéricos do homem que levantou do chão e se desvencilhou das mulheres com uma agilidade incrível.
− Saia já daqui, Satanás, pois este corpo não te pertence mais!!! Estou na graça do Senhor!!! Estou caminhando ao lado de Jesus!!! Vão pecadoras, instrumentos do maligno, afastem-se de mim. E não pequem mais. Jesus lhes ama!!! O sangue de Jesus tem poder!!! Tratem de largar essa vida de luxúria e depravação, para poderem penetrar no reino dos céus. “Ficai atentos e vigilantes, porque o diabo anda rondando, à procura de quem devorar.” São Pedro em carta a São Paulo, 1Pd 5,8.
As mulheres ficaram apavoradas diante do ataque evangélico. As pessoas que estavam na porta da penitenciária, acompanhando a cena novelesca, dentre elas alguns homens e mulheres com suas bíblias na mão, acorreram para perto do pastor, que avançava de dedo em riste na direção de Santelmo, e de forma agressiva berrava: “saia desse corpo, Diabo! Eu te ordeno em nome de Deus. Esta alma pertence a Jesus. Volte para o fogo do inferno, para as profundezas da Terra”.
Santelmo era grandalhão, e estava bem acima do peso. Tinha a pele muito clara, e sempre que ficava tenso virava um pimentão. O primeiro fluxo do sangue atingia a cabeça, com destaque para as orelhas, que esquentavam muito. Parecia um camarão em água fervente. O cara ficou atônito com a fúria do colega. Tentou dar no pé, mas foi agarrado pela mãozona do antigo companheiro de trambiques, que o puxou pela gola da camisa. A vermelhidão do rosto sumiu como num passe de mágica. Sua face ficou lívida, qual pedra mármore. Deixou escapar um grito de desespero, imaginando que o ex-amigo estava esperando por esse momento, após tanto sofrer na cadeia, para se vingar. Na sua cabeçona passava o pensamento: “a vingança é um prato que se come frio”... Não conseguiu conter o jato de urina que encharcou suas calças, escorrendo pernas abaixo. Olegário pousou suas mãos com força na fronte do colega de tantas aventuras, aproximou sua boca do ouvido direito do cabra e sussurrou: "seu idiota, essas piranhas poderiam por abaixo os meus planos. Confie em mim, nós vamos ganhar muito dinheiro juntos. Agora, faça tudo que o papai aqui mandar." A cor vermelha foi voltando a face do golpista, que suspirou aliviado pensando: “ufa! Esse meu amigo é mesmo um gênio. Deve estar bolando um super plano. “Graças a Deus o cara não estava de todo matusquela”.
Todos começaram a orar em torno dos dois vigaristas. O pastor continuava com o seu ritual: "eu te ordeno, saia desse corpo”, empurrando com força a cabeça de Santelmo, com as duas mãos, em direção ao chão, até este ficar de joelhos. Duas mulheres que faziam parte do grupo de evangélicos avançaram em direção as prostitutas, que estavam paralisadas como estátuas com a cena que se desenrolava, esbravejando:
− Suas malditas!!! Vocês vão arder no fogo do inferno se não se arrependerem de tentar seduzir o nosso homem de Deus. A única salvação possível é vocês se entregarem para Jesus, de corpo e alma.
Mais evangélicos se dirigiram as putas, tentando convertê-las. As meninas deram no pé, apavoradas com a situação. Dispararam em desabalada carreira, largando para trás as suas sandálias e sapatos de salto alto. Corriam como o Diabo corre da cruz nos filmes de terror. Na cabeça delas, passava o mesmo trailer: “vamos ser imoladas em praça pública, quiçá queimadas vivas em uma fogueira enorme. Pernas para que te quero”.
Sol a pino. Dia escaldante. Nem uma brisa no ar. Santelmo suava por todos os poros. Além disso, para apimentar ainda mais aquela manhã, no melhor estilo novela mexicana, o cara estava todo mijado, com a roupa amassada e suja de uma terra avermelhada que tomava conta do entorno da penitenciária. O pobre coitado estava morrendo de dor nas pernas. Seus joelhos estavam esfolados de ficar tanto tempo ajoelhado, ouvindo a ladainha dos evangélicos, coordenados pelo colega de golpes que agora insistia em se dizer pastor. Tentava se equilibrar ajoelhado ao lado do pregador, numa ginástica para se ajeitar da melhor maneira possível, resistindo o quanto podia naquela posição desconfortável que o amigo lhe impunha. Na sua cabeça passavam os flashes mais desconcertantes, tipo: “será que esse novo golpe não seria uma tremenda fria?” Ficou imaginando se não iriam lhe pregar em uma cruz, ou mesmo em um poste de iluminação ou nas árvores que estavam próximas. Ou, quem sabe, lhe dariam umas boas chibatadas, como fizeram com Jesus ou mesmo com os pobres diabos dos escravos. Enquanto divagava por estes pensamentos, Olegário voltou a se aproximar do seu ouvido e sussurrou: "nós vamos ganhar uma boa bolada, confie em mim." Essa fala já bastava, pois sabia que o cabra era mesmo astuto e que estava maquinando algo grandioso. Só restava ao vigarista ficar naquela posição desconfortável e aguardar os próximos capítulos daquela trama rocambolesca.
Todos ao redor do pecador, ajoelhado e todo sujo, oravam e repetiam, sempre aos berros, as palavras proferidas pelo pastor. A cada momento, chegavam mais fiéis. Aquilo parecia um enxame de abelhas, com aquele zunido ensurdecedor. De rabo de olho, Santelmo pôde perceber que no grupo que se formava tinham muitos agentes penitenciários. Uma onda de arrepio percorreu o seu corpo dobrado sobre os doloridos joelhos: "caramba, agora o bicho vai pegar. Esses guardas vão baixar a porrada na gente. Ai, meu Deus”, pensava com os seus botões. Enquanto estava absorvido por aquelas ideias notou que a expressão facial do amigo mudará e que a oratória estava ficando mais efusiva. Parecia que o pastor estava buscando no âmago da alma as palavras certas para atingir a pequena multidão que se formou.
− Você vai deixar esse corpo agora, Demônio, pois quem ordena é Deus. Ele, o todo poderoso, quer que você volte para as profundezas do inferno! Esta alma é de Jesus, e você está repreendido, Satanás! Saia agora desse corpo cão maldito! Farei você rolar pelo chão e abandonar esse pobre homem.
Santelmo entendeu a mensagem do amigo. Aquele era o momento de ele entrar em cena, com uma representação convincente de exorcismo. Deu graças a Deus de ter assistido a alguns cultos pela televisão nas madrugadas, quando não tinha nada de interessante nas emissoras de canal aberto. Não teve dúvida, saiu rolando e se debatendo naquele chão quente de terra avermelhada. Enquanto implementava a tremedeira, pensou: "que alívio para os meus joelhos, ufa!" Ficou se debatendo alucinadamente por um bom par de minutos, como se estivesse acometido de um ataque epilético. Outra encenação bem feita, já que havia presenciado, por mais de uma vez, as crises de um primo. Coisa assustadora, que marcou muito a sua adolescência. As pessoas gritavam freneticamente as orações, exultando a vitória do pastor sobre o Demônio. Todos que se dirigiam ao presídio acabavam parando naquele espaço onde se aglomeravam os fiéis e participando do ato de exorcismo.
A notícia se espalhou rápido, e chegou ao interior da cadeia, dando conhecimento a todos de que o pastor ao sair da penitenciária, teve um encontro com o Diabo, que veio tentar seduzir o bom homem de Deus, com três belas pecaminosas mulheres. O Demônio se apossou do corpo de um homenzarrão, branco qual a neve, que ficou vermelho feito o capeta, queimando no inferno, quando foi tocado pelo pregador. Agora a porrada estava comendo lá fora. Os detentos começaram a orar também. Aquela vibração positiva tomou conta do presídio. O clamor era tão forte que podia ser ouvido do lado de fora do complexo. Olegário percebeu que era o momento para finalizar o ato e mandou ver um sermão e a sua oração final. Falou mais ou menos assim:
− Você tem uma nova vida, irmão!!! Deus lhe tirou das garras do Diabo, providenciando a sua libertação definitiva, e nós estamos aqui para não permitir a vitória dos demônios sobre a corte celestial. Vamos ajudá-lo no que for necessário para que o maligno não retorne e se aproveite de suas carências materiais. Deus colocou todos nós, aqui reunidos nessa grandiosa manhã, para nos testar e ver até onde vai a nossa fé nos seus desígnios, assim como a caridade em nossos corações.
As orações vindas do interior do presídio ainda podiam ser ouvidas, mas o povo que estava ao redor do pastor e do pecador se aquietou, prestando atenção nas palavras de Olegário, que continuou mais animado com a sua pregação: “assim que saí por aquele portão, pude ver o Diabo dominando os atos desse pecador. Ele estava possuído e todos nós aqui reunidos em nome de Deus, conseguimos expulsar os demônios do corpo desse pobre homem… Diga, meu irmão, o que o Diabo queria com você?” Santelmo entendeu onde o amigo estava querendo chegar e mandou, entre soluços e lágrimas rolando pela face: “confesso que ao acordar hoje cedo ouvi uma voz dizendo”:
− Santelmo! Não podemos perder Olegário para o Reino de Deus... Ele já pertencia às nossas falanges, façamos com que ele retorne ao caminho do mal, as orgias, golpes e trambiques. Vamos dominá-lo! Pegue algumas mulheres e as leve até ao seu parceiro de crimes. Conquiste-o de volta…
Seu pranto aumentou, e alguém surgiu com um copo de refrigerante, que foi sorvido aos poucos, entre pequenos goles e muitos soluços. Enquanto procedia dessa maneira, o cara ia pensando em melhorar o seu desempenho.
− Eu juro que não queria fazer isso, porque também gosto de Deus, mas minha mãezinha está muito doente, uma doença grave, que se não fizer uma cirurgia de imediato poderá morrer em breve. O Diabo garantiu que eu conseguiria o dinheiro para essa operação se eu ajudasse trazer Olegário do caminho do bem para o caminho do mal...
Mais choro convulsivo. Mais refrigerante e palavras de conforto. "Agora não sei como vou resolver o problema da minha mãe”...
− Calma irmão Santelmo! Nós vamos fazer o serviço completo contra o Diabo. Ele será derrotado. Essa gente que aqui está pertence ao Povo de Deus. Foi o Senhor que os colocou aqui, nessa escaldante manhã, justamente para derrotar o maligno. A força de Deus é bem maior do que a astúcia do coisa ruim. Todos os que aqui se encontram fazem parte do exército de Deus...
A cada frase pronunciada era um tal de “Glória a Deus”, “em nome de Jesus”, “Deus é fiel”, “o sangue de Cristo tem poder”, “aleluia” e “amém”, cada vez mais alto, com a participação teatral do pecador redimido. De supetão o pastor pergunta: “irmão, qual é o custo da cirurgia da sua mãezinha?” Santelmo: “seis mil e quinhentos reais.” Olegário deu um grito estridente que assustou mais da metade dos presentes, principalmente ao parceiro que percebeu pelo olhar furioso do amigo que deu uma tremenda mancada, deveria ter pedido bem mais. O pastor continuou na mesma linha,
− Meus amados irmãos, aí daquele que permita a vitória do maligno! Vejam o que o Diabo é capaz de fazer para aprisionar uma alma no inferno. Quem realmente merece o Reino do Senhor vai provar nesse momento, colaborando para o pagamento da cirurgia da mãe do irmão Santelmo... Os olhos de Deus estão voltados para este lugar e Ele nos observa atentamente. Podemos sentir a sua presença... E eu lhes garanto: o que derem para este pobre homem será multiplicado, quintuplicado em suas finanças.
Todos gritaram “Glória a Deus”!!! “Aleluia Senhor”!!! O pastor escolheu uma fiel para recolher as doações em uma sacola de plástico. Aproximou-se, novamente do ouvido do parceiro, como se fosse fazer uma oração pessoal, dizendo: “não conheço essa mulher. Fique de olho nela. Não quero ter uma surpresa desagradável com as doações.” No final foi apurado mais de oito mil reais, entre dinheiro e cheques.
* Estória de Jeronimo Guimarães Filho, adaptada e copidescada por mim.

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