Ao chegar em casa, após a labuta do dia a dia, gosto de estirar-me no sofá, de cueca, só... Somente só, e dialogar com o meu dedão do pé esquerdo. Cara legal tá ali! Um socialista gente fina. Daqueles que não enche o saco da rapaziada com patati-patatá, a triste lengalenga dos filósofos sem filosofia e dos pensadores sem ação. Meu dedão do pé não joga conversa fora, parte logo pra ignorância. Pontapé é com ele mesmo. Nosso bate papo é muito versátil. Vai do purismo das ideologias políticas e filosóficas, sem restrições, ao erotismo do envolvimento carnal com a minha conquista mais recente. O danado adora esse papo. Diz que se amarra em alisar as belas pernas do brotinho. Só fica de cabeça quente, vermelho qual pimentão, quando vou à praia e não levo minhas sandálias. Ai é que o bicho pega. Faz saírem pela minha pobre boca os palavrões mais ardentes do planeta. Fora disso é um companheiro de fé. Onde eu for o danado tá junto. De vez em quando, coisa rara de acontecer, faz uma rebelião sindical. Convoca seus companheiros laterais, levanta um motim e esburaca o meu tênis, de peito aberto e cabeça erguida, para reivindicar melhores condições de moradia e higiene. Fico sem graça de andar pela rua com um revolucionário à mostra. Poderiam pensar que estou mancomunado com os revoltosos. Mediante esta pressão, acabo comprando um novo par de calçados, mais espaçoso e arejado.
Já com o dedão do pé direito não mantenho diálogos tão íntimos. O cdf sempre acorda primeiro e pula para fora da cama, puxando-me e insistindo para que eu faça o mesmo. Diz sempre que é pra dar sorte. Até agora ela não pintou! O que vejo todos os dias é a mesma rotina. Levantar, lavar a cara, engolir o café, pegar a condução entulhada de gente, bater o ponto e encarar o batente. O fdp ainda tem a petulância de dizer que isto é sorte! Quando fico pau da vida e digo umas poucas e boas, o puto vem sempre cobrar um gol que fez nos velhos tempos, quando jogávamos de lateral esquerdo no time da segunda divisão do ginásio (e lá se vai um bom tempo), que assegurou o empate do jogo nas quartas de finais e nos deu o direito de disputarmos a final e nos sagramos campeões do Intercolegial. Foi o único feito realizado, não sei por que cargas d’água, pelo direitinho, que não reclama nem de chuteira apertada. Quando relembra, lacrimoso, aquele gol, faz minha consciência calar e dar razão ao feito. Na época o gol foi comemorado durante uma semana. Um gol meio cambeta, de bico, que desnorteou o goleiro que choramingava: “mas ele não chuta sempre com a esquerda?!?...” Os dois, esquerdo e direito, respeitam-se mutuamente. Enquanto um dá um passo a frente o outro fica atrás. Assim mantém-se o equilíbrio. Só fico preocupado quando tomo a posição de sentido, geralmente para cantar o hino nacional. Os dois ficam quase que colados e cochicham o tempo todo. Até hoje não decifrei o que dizem, mas tenho a pesada impressão que criticam minha pessoa...
Rio, agosto de 1980.
Foto Marcos Alexandre, janeiro de 2023.

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