Meu avô Joaquim adquiriu a casa que posteriormente herdei de meu pai em 1942; ela está situada na Rua Casimiro de Abreu, no Centro de Petrópolis. Traumatizado com um incêndio que destruiu o sobrado onde morava com a minha avó na então Avenida Quinze de Novembro, atual Rua do Imperador, comprou-a de um amigo cliente da barbearia que se chamava Salão Paris. Álvaro Varanda ofereceu a casa para o meu avô que, segundo relato da minha querida avó Nair, não queria adquiri-la, pois não tinha o montante necessário para efetuar a compra. Álvaro combinou com Joaquim que ele pagaria conforme pudesse. Em pouco tempo a dívida havia sido quitada, surpreendendo até mesmo o antigo proprietário.
Essa casa, nos anos 1960, era um verdadeiro brinco. Todo final de ano meu avô fazia uma pintura, ora por fora, ora por dentro, deixando-a preparada para o Natal, época que ele e minha avó curtiam demais. Nair adorava viajar e passear, já Joaquim preferia receber os amigos em casa, pois era a forma dele valorizar a conquista da casa própria e recepcionar os amigos no aconchego do lar. Para os mais queridos, havia sempre um bom bacalhau do Porto ou um cabrito assado. O vinho verde, que ele tanto gostava, era o Acácio, tinto ou branco, não importava; o que contava era matar as saudades da Terrinha.
A casa não é grande, tem uma área construída de 120 metros quadrados, com um bom terreno de metragem quase igual à da área coberta, com dois canteiros onde sempre floriam belas roseiras, edificada sobre pedras e tijolos maciços em 1903. Ela fica elevada aproximadamente quatro metros do nível da rua e tem um bom terraço para se apreciar a vista.
A narrativa que segue foi feita por minha avó em uma tarde chuvosa de inverno em Petrópolis, lá pelos idos dos anos de 1970, quando ficávamos lendo na agradável varanda envidraçada que toma toda a frente da casa. O episódio ocorrera quase trinta anos antes, no final da década 40. Certa feita, Nair encasquetou que deviam fazer um sótão. Ela sempre apreciou essa parte das residências, herança da sua origem germânica. Discutiu o assunto com o meu avô durante algumas semanas e ele acabou cedendo à ideia da sua amada. Convidou um carpinteiro para dar um parecer sobre a viabilidade de pôr em prática o projeto da esposa, que havia inclusive traçado um esboço em cartolina branca. Seu Jorge fez pequenas modificações no projeto idealizado por Nair e deu o orçamento em poucos dias, o qual foi aprovado pelo casal. Eis que depois do aceite, o profissional desapareceu.
Passadas algumas semanas e nada de Seu Jorge dar as caras. Daí, minha avó, com o seu peculiar bom humor, começou a invocar o santo de mesmo nome. "Valei-me, meu São Jorge! Faz com que o seu xará apareça para iniciar os trabalhos do sótão." Por diversas vezes e por vários dias ela tornava a chamá-lo. Eis que numa bela tarde de outono, Nair estava refastelada na cadeira de balanço, curtindo a sesta e o assento, que era monopólio do marido nos seus dias de folga, quando escuta um trotar de cavalo. Levanta-se da cadeira e olha pelo janelão da varanda, que estava escancarado para arejar a residência naquele dia ensolarado, e leva um baita susto quando avista um cavaleiro de armadura reluzente, montado em um belo garanhão branco como a neve.
O desespero toma conta do seu espírito. Um arrepio percorre sua espinha dorsal e um frio intenso envolve todo o seu corpo. Sua reação logo após avistar tal imagem foi correr para o seu quarto, que dava para a varanda, e fechar a porta e a janela, tanto as venezianas quanto as partes envidraçadas. Trancafiada, ainda ouvia o trotar do animal nos paralelepípedos que calçavam a rua. Quando o barulho passou, tomou coragem para abrir uma fresta da janela, conseguindo avistar o cavaleiro apeando da montaria, amarrando o cabresto no portão da sua entrada e subindo os degraus da escada que dá acesso ao terraço.
Nair começou a tremer dos pés a cabeça. Tornou cerrar a janela e desabou na cama, pois tinha a impressão que iria desmaiar. Em seguida, ouviu a campainha tocar. Foram três chamadas intercaladas por breves intervalos de silêncio, mas com um soar longo e intermitente do disparo. Nesse ínterim, refletia com os seus botões: sua vizinha Geni, que morava em um apartamento bem de frente para o portão da sua casa, conversava animadamente com uma amiga encostada no murinho do prédio. Quando ainda estava na varanda, Nair notou que as duas não deram por conta do cavaleiro subindo a Casimiro de Abreu. Pelo trotar do animal, deve ter ido até o meio da ladeira e depois retornado e apeado diante das amigas, que continuavam a papear sem perceberem a cena inusitada.
Como se despertasse de um pesadelo, após o terceiro soar da campainha, tomou a decisão de ir até a entrada. Ainda abalada e trêmula, saiu de seu quarto pelo acesso da varanda e deu três longos passos até a envidraçada porta de entrada. No seu lento caminhar, que mais parecia uma eternidade em câmera lenta, avistou o cavaleiro na sua reluzente armadura, com o seu belo elmo brilhando aos raios do astro-rei naquela tarde ensolarada. Ao abrir a porta, foi indagada:
— Por que a senhora está invocando o meu nome? O que se passa? Alguém está ameaçando-a? Algum problema de saúde consigo ou algum ente querido?
Ela só conseguia balançar negativamente a cabeça a cada pergunta lançada. Questionada sobre o motivo da sua súplica, ela relatou o caso do carpinteiro. Ah! Não prestou. O cavaleiro passou-lhe um belo sermão, dizendo que ela não deveria invocar o nome dele para coisas tão insignificantes; que ele tinha muitas demandas para dar cabo e que aquela palhaçada de sótão não merecia da sua parte nenhuma consideração. E disse mais: que ela desistisse daquela ideia, pois ele não autorizava nenhuma ampliação na residência. Dito isso, mandou um "passar bem" acompanhado de "só me chame quando estiver em perigo ou necessitando de um socorro médico".
O cavaleiro desceu a escada com sua armadura a ranger; desamarrou o cabresto do seu cavalo que estava preso ao portão, montou e partiu num trotar lento e cadenciado. As vizinhas continuavam conversando animadamente. Nair, ainda tremendo qual vara verde ao vento de agosto, foi sentar-se na cadeira de balanço e repassar o ocorrido. Perdeu a conta das horas e quando deu por si Joaquim estava ao seu lado perguntando se ela estava passando mal. A noite já descia e o jantar não havia sido preparado. O marido ficou encafifado com a atitude da mulher, pois ela não era de faltar com suas obrigações e os zelos para com ele.
Após tomar o seu banho, beber a sua dose de bagaceira, sentou-se a mesa da copa para esperar sua janta ficar pronta e daí lembrou-se de dar a boa nova à esposa:
— Nair, hoje ao sair da barbearia, no caminho para casa encontrei com o Seu Jorge. Passei um carão daqueles nele. Ele prometeu que depois de amanhã virá começar o trabalho do sótão.
De onde se encontrava, ao lado do fogão, preparando um mexido, a mulher disse de supetão:
— Não quero mais saber de sótão nenhum! Pode desmarcar com ele. Depois de tanto esperar, desisti da ideia.
Meu avô ainda tentou argumentar, mas a questão estava selada. Ele, que nunca soube da história do cavaleiro, ao contar a parte conhecida do ocorrido às pessoas mais chegadas, concluía: "Nair é mesmo da pá virada, muda de ideia da água para o vinho”.
Nessa fotografia, batida pelo meu pai (José Roberto), aparece em primeiro plano minha avó Nair e sua sobrinha Luiza. Ao fundo meu avô Joaquim. A imagem foi feita nos anos de 1940, logo após meu avô ter adquirido a casa que herdei e atualmente resido.
Petrópolis, 15/02/2020.
Foto: Marcos Alexandre, Petrópolis, Centro, março de 2008.


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