A rua


Foi nela que se passaram as melhores coisas de minha adolescência. A primeira namorada, o amor sincero, saído do fundo das entranhas, na ilusão pueril da união para toda a vida. Os beijos escondidos, com gosto de pecado, as brincadeiras juvenis, como queimado, pique-esconde,   berlinda (verdades nunca ditas), peladas no paralelepípedo, os furtos de frutas nos pomares da vizinhança, as histórias de assombração e disco voador, os troles de rolimã arrebentando o cimento das calçadas... Tempo bom! Quantas situações encaradas despreocupadamente. Seu Alonso sempre a reclamar dos troles e das bagunças noturnas, regadas a cachaça e batidas, quando mudávamos de lugar os cavaletes da prefeitura e deixávamos os buracos sem aviso. Depois era aquela esbaldação ao vermos os carros caindo nas armadilhas. Uns ficavam por lá até o dia seguinte. Rodas empenadas, suspensão quebrada e eixo partido eram os sintomas mais comuns. Às vezes tínhamos a cara-de-pau para oferecer ajuda.

— Muito obrigado, rapazes! Essa prefeitura é uma desgraça! Não colocam nem cavaletes para avisar onde existem buracos! 

E nós concordávamos e ajudávamos a malhar o prefeito e a sua inoperante máquina administrativa. Salientávamos que as placas de sinalização inexistiam. Evidente, pois as mesmas iam integrar as nossas coleções. Colecionávamos placas de sinalização, de automóveis e de construções. Saíamos na calada da noite e créu, apanhávamos todas as placas que estivessem ao nosso alcance. Uma vez retiramos as placas de um automóvel da embaixada alemã, que estacionara defronte à casa de um vizinho. Ficaram sendo as mais valiosas da rua. Recebíamos visitas de outras turmas para verem as tais placas.

Na ocasião eu morava ao lado de um almirante, avô de duas gatinhas, o sonho pecaminoso da rua... Era um tal de cair bola no quintal do almirante de pijamas, quando as netinhas estavam por lá. Muitas vezes as danadinhas já ficavam sentadas no jardim à espera de uma bola mal cruzada. Bola no quintal do vizinho, par ou ímpar, debaixo de socos e pontapés, para decidir quem buscaria a redonda e receber em troca um acanhado sorriso. Mas, a brincadeira que causava maior sensação era o pique-esconde. Alguém contava até 100 de olhos vendados, atrás de um poste, e saía à procura dos escondidos. Caso surgisse alguém, teria que correr até o poste e dizer: “pique, um, dois, três”, acusando fulano em tal lugar. Se um dos escondidos chegasse primeiro no poste, batia com a mão e gritava: “pique, um, dois, três, estou salvo”, e proferia  seu nome. O último escondido tinha o direito de salvar todos, caso batesse primeiro no poste, anunciando a bela sentença: “salve todos” O que mais causava alarido era quando as meninas trocavam suas vestes com os rapazes e deixavam o acusador ver parte do corpo, para que este acusasse em falso e a brincadeira fosse anulada, reiniciando-se novamente para a satisfação dos escondidos. Na procura de um bom local para se esconder, valia de tudo. Trepar em árvores, se enfiar debaixo de carro, entrar no quintal dos outros, nas varandas, se embrenhar num canteiro e dar uma de flor, desalojar o cachorro e tomar sua casinha, daí por diante. Em cada pique descobríamos novos locais.

Certa vez, dois colegas foram se esconder no telhado da casa de dona Luiza, uma pobre viúva que se pelava de medo dos ladrões. Do lado esquerdo da casa havia um pé de goiaba que servia de escada para o telhado nas brincadeiras de pique-esconde. Estavam os dois bem alojados, e a brincadeira transcorria normalmente. Até que surgiram dois camburões da polícia! Pararam em frente à casa da viúva, com seus faroletes voltados para o telhado. A velhota olhava da janela assustada, falando baixinho.

— Eles estão lá em cima!

Os policiais sacaram os revólveres, e o que estava de metralhadora subiu no teto de um dos carros. A meninada começou a juntar em volta dos policiais.

— Afastem-se! Tem ladrão no telhado da casa! Pode ser perigoso ficar por aqui! Voltem já para suas casas!

Nós nos interrogávamos sem saber o que estava acontecendo, até que ouvimos a voz chorosa de Ricardo.

— Nós não somos ladrões! A gente só tava brincando de pique-esconde!

Recomendações do sargento, juras de não mais brincar no telhado, puxões de orelha, palavras ásperas das mães, castigo (dois dias sem brincar na rua) e outras medidas de nada adiantavam. Dias depois, pique, um, dois, três, estávamos de volta, aprontando novas traquinagens, que se escondiam nos vãos dos paralelepípedos, onde em cada pedra havia uma história pra contar.

Rio, janeiro de 1980.

Foto: Marcos Alexandre, Petrópolis, Centro, junho de 2017.

Comentários