Tardes de garoa, intermitente e gélida, não bastavam para afugentar o sopro quente e vivaz da vitalidade dos integrantes, andarilhos e maltrapilhos, do Tharpa Blues Band. Banda, vejam só! Banda de três. Era uma banda desbandada. O sonho dourado, ver o trio tornar-se uma banda. Fernando, o cabeça, arranjador e músico dos sete instrumentos, encarnava a alma do grupo. Tocava piano, bateria, guitarra e contrabaixo. Entre os maços de cigarro e cifras musicais, uma garrafa de vodka para manter acesa a chama da inspiração. Ronaldo, o louco alegre, guitarra base, cheio de balanço no ritmo abrasileirado do rock, mas com os miolos bem reguingueiros, um rei louco destronado por outros grupos. Não dizia coisa com coisa. Pior, cantava a plenos pulmões: “quero massacrar minha cabeça num pa-ra-le-le-pí-pe-do”, era a síntese da falta de coerência existencial ou um manancial de burrice. Completando o grupo, o malandro aqui. Malandro saído das fraldas, instrumentista-letrista-compositor metido a empresário, de guitarra debaixo do braço, pé na estrada, correndo atrás das festinhas em clubes dos bairros proletários.
Bom mesmo era tocar em festa de casamento. Comida farta e grátis. Entrada franca na animação de uma vida nova, profícua e garantida. O público não reclamava, pois nada pagava. E lá estávamos nós, guitarras embaladas pelo sorriso escancarado do noivo e fogosas risadinhas da menina que casou. Enquanto, entre um acorde e outro, vislumbrava as safadezas da noite de núpcias, uma linda morena sobe no palco e fica ao meu lado, taciturna presa ao som do grupo. Entre uma música e outra, troca olhares indiscretos. Por fim, já cansada e perdendo o rebolado, cochicha algo ao meu ouvido, que surdo pelo retumbar dos elétricos acordes, nada escuto. Parado, estático, tentando decifrar as palavras da formosura, fiquei em lá menor, absorto e envolvido pela graça daquela musa encantadora. Que belas pernas e lindos seios...
— Fred! Fred! Vai pra mi, pra mi...
Gritava o maestro Fernando. O baterista de aluguel não entendia patachongas, mas, intuitivamente, aumentava o repicar das baquetas na caixa e tan-tans. E lá ia eu, desafinadamente alegre. Terminado o baile, era aquele quebra-pau.
— Ensaiar pra quê?! Você quando vê um rabo perde a noção dos compassos.
O jeito era calar, diante de tamanha verdade. Mas o Tharpa Blues Band crescia, com a chegada de Mario. Cabeça-feita, bom de ritmo e ótimo de harmonia. Vinha calado, muito na dele, meio desconfiado. Não era pra menos. Tínhamos participado do grupo Cristal. Tantos ensaios e brigas para, no dia da estreia, no Albergue, a doce casa dos queijos e vinhos de quinta categoria, uma batida da polícia terminar com a ilusão dos pobres músicos. O Cristal se partiu. Mario formou comigo o Duodene Apocalypse, uma dupla gravando em play-back, realizando um trabalho de laboratório. Mas faltava a vibração dos shows ao vivo, que fomos buscar nas origens do Tharpa, o qual se tornou explosivo, e com isso virou TNT Rock and Blues. Os nomes tinham que ser em inglês, apesar do meu xenofobismo, pois com made in USA os clubes ficavam cheios e a moçada balançava os quadris. Nossos ensaios eram realizados num quartinho separado, na casa de minha avó Nair, apelidada pela turma de pinel (cabeça prafrentex), que forramos de papelão e caixas de ovos para dar melhor acústica. Ali, naquele santuário, passávamos as tardes e noites frias de Petrópolis aquecidas pelos amplificadores e garrafas de vinho.
Só que um dia o sonho acaba e temos que entrar no compasso desse “Samba de uma nota só” que é a vida.
Rio, 30/01/81
Fotos: Marcos Alexandre
OBS: a foto de abertura é do show que meu compadre (Beto Galluzzi) fez quando a minha afilhada completou 15 anos em dezembro de 2000.
A minha foto foi batida com o automático da Pentax K1000 colocada sobre um tripé na década de 1980.
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