Estava escuro e chovia muito. Era uma noite fria de agosto, aquele mês que dá arrepios. Os animais estavam sujos de lama, cansados e nervosos. Parecia que já sabiam o que estava para acontecer. Os soldados não conseguiam manter os cavalos calmos. O grupo era formado por 20 homens, comandados pelo capitão Drak. Tinham cavalgado por mais de 2 horas e estavam chegando à aldeia. A missão não ia ser difícil, pois naquele lugar só havia camponeses, que deviam estar dormindo e não iriam ver nada e, se por acaso vissem alguma coisa, não teriam coragem para contar...
Desciam a última colina e já podiam ver os telhados das casas, 30 no máximo. A chuva aumentou. Drak gostava disso. O barulho das águas abafava um pouco o ruído da tropa. Iam devagar, pois todos estavam exaustos. Um trovão soou alto, alguns animais se assustaram, enquanto os homens praguejavam. Saía fumaça da chaminé de três casas, outras cinco tinham luzes, o restante estava no escuro e no mais sepulcral silêncio. Um cachorro latiu ao perceber a aproximação dos cavaleiros. Dracon, braço direito do capitão, partiu no galope para cima do cão. O zunido do machado rasgou o ar e decepou a cabeça do animal. O silêncio voltou a reinar.
A casa que procuravam ficava no final da única rua. Tinham que atravessar a aldeia para alcançá-la. Estavam no meio do percurso quando alguém abriu uma janela. Drak deteve o passo e levantou a mão direita. Todos pararam ao seu sinal. O capitão apontou, com sua espada, para a janela entreaberta. Três soldados se dirigiram para a casa.
Da sacada de seu quarto, Julius observara a cena, e prontamente foi acordar Maria. As bufadas dos cavalos estavam próximas. Em silêncio, eles pegaram as grandes capas de couro de carneiro e saíram pela porta dos fundos. Correram para a mata que ficava a cem metros. Quando estavam quase chegando, ouviram um chamado baixinho:
- Julius, por aqui!
Sem saber quem chamava os dois instintivamente rumaram para o local de onde partira a voz. Ela era firme e reconfortante. Ao atravessarem os primeiros arbustos depararam com um homem magro, alto, envolto num grosso manto de lã com capuz. Seus olhos brilhavam no escuro da noite. Era uma luz diferente, com uma intensidade reconfortante.
- Vocês correm perigo. Vamos sair já desse lugar. Os homens de Kan procuram por Maria. O conselheiro Filus já sabe o segredo.
Maria e Julius lançaram um olhar de interrogação. Não captaram nada das palavras do homem, que aparentava ter uns 60 anos. Movimentava-se com firmeza e harmonia. Ele conhecia bem o lugar. Rapidamente estavam fora do alcance dos soldados após terem percorrido uma picada na mata de aproximadamente 500 metros. A noite na floresta era ainda mais fria. A chuva fina continuava a cair. Julius pensava sobre a chegada dos homens de Kan. O que eles poderiam querer com Maria, uma jovem humilde, sem instrução, bonita, mas mal cuidada? Não se vestia bem e tinha os cabelos desalinhados. Estava quase sempre com roupas masculinas. Sua pele era queimada de sol, pois vivia da labuta, cultivando ervas medicinais. Mas tinha um belo corpo bem torneado, apesar de estar sempre escondido pelas vestimentas que trajava.
Tendo caminhado por duas horas, mantendo-se dentro da floresta de altos ciprestes, chegaram a uma clareira, onde havia uma cabana de madeira. Julius pensou, que delícia, vamos poder escapar do frio e nos abrigar da chuva. O que ele não esperava era encontrar um local tão mágico e aconchegante. Ao entrarem sentiram uma paz de espírito muito grande. A luminosidade do local parecia com o entardecer. Não havia tochas nem velas, mas a luz era intensa e agradável. Os móveis eram de madeira clara, confortáveis e belos. Toda a cabana era forrada com belos tapetes, todos com lindos desenhos que formavam muitos símbolos, a maioria desconhecidos pelo casal.
O bom homem que os guiou até ali disse chamar-se Milus, e falou para eles ficarem tranquilos naquele lugar, pois ali estariam seguros e em breve viriam buscá-los. A senha para o reconhecimento dos emissários seria a frase “o amor é a chave para a vida”. Julius tinha muitas perguntas na cabeça, mas não pode fazê-las, pois o misterioso homem desapareceu tão repentinamente como surgiu.
Naquela cabana agradável e reconfortante, o casal se alimentou com iguarias que há muito não comiam em sua aldeia. Uma deliciosa carne de caça, frutas frescas e cereais maravilhosamente preparados com temperos saborosos. O local era simples, porém com muitos objetos estranhos para ambos. Mas a boa comida, o excelente vinho e os agasalhos confortáveis tornavam tudo mais convidativo. Passaram uma noite agradável, na medida do possível, uma vez que ainda estavam encafifados com a aparição noturna dos homens de Kan.
Ao amanhecer, Julius saiu sem Maria perceber e foi explorar ao redor da cabana. Ela estava situada em uma clareira não muito ampla, mas bem cuidada, com um belo gramado e muitas plantas circundavam a construção. O lugar transmitia uma sensação agradável de segurança e paz de espírito, coisas que aqueles jovens não desfrutavam fazia meses, desde que Kan assumira o reinado ao usurpar o trono do seu irmão Ben. Não havia passado um ano, mas os súditos já sentiam na pele a mudança de comando. O soberano deu início a uma busca sádica por conhecimentos sobrenaturais que lhe garantissem poder eterno.
Cansado de ver os aldeãos sendo sistematicamente torturados, Filus, o conselheiro do rei, que já havia servido ao finado irmão de Kan, resolveu pôr fim àquela loucura. Sabendo que Maria possuía mestria na manipulação de ervas que curavam inúmeras moléstias, Filus fez seu chefe crer que a jovem era uma bruxa que detinha o segredo da magia dos alquimistas. Daí a chegada da tropa comandada por Drak na pacata aldeia onde vivia o casal. A operação foi orquestrada pelo conselheiro, com a participação de Dracon, o braço direito do capitão, que era também um protegido de Filus desde o tempo do rei Ben.
O conselheiro sabia que a sua delação era só meia verdade, mas não se importava com isso, queria acabar com a cantilena do rei em descobrir o segredo da imortalidade. Embora achasse que talvez sua estratégia não passasse de uma panaceia, mas valia tudo para conseguir demover Kan daquela obsessão. Como detinha informações a respeito de todos os súditos do reinado, escolheu Maria para ser mártir. Ele tinha noção de que a jovem era uma bruxa envolvida com curas milagrosas através de unguentos, elixires e sumos extraídos de diversas plantas. Isso bastou para o conselheiro incriminá-la diante da corte.
Milus sabia que todos os alquimistas corriam perigo no reinado de Kan. Sendo assim, tentava de todas as formas ajudar os bruxos para que escapassem da perseguição do rei déspota. O mago já acompanhava a evolução de Maria ao lidar com as ervas milagrosas, só que ele não havia pensado que seria ela a escolhida para pagar o pato diante do monarca sanguinário. Poucas horas antes da tropa partir em direção à aldeia do jovem casal, uma das concubinas da corte foi até a loja do alquimista, uma espécie de livraria, farmácia e consultório dentário, avisá-lo sobre os planos de Filus. Imediatamente o mago deixou o seu posto e rumou à galope para resgatar a dupla que corria perigo.
A cabana que ficava na clareira onde Milus deixou o jovem casal era um refugio localizado bem no meio da Floresta de Zlin, a maior do reino de Kan. O local, além de ser de difícil acesso, era também protegido por uma energia mágica, ou seja, mesmo que curiosos se aproximassem dela, não conseguiriam vê-la, pois um manto maia (ilusão) cobria toda a clareira. Na visão de quem não estivesse na vibração do local surgia uma enorme pedra intransponível, com todos os lados formados por escarpas íngremes. Era um esconderijo perfeito para abrigar as almas iluminadas que o rei teimava em perseguir.
Milus já havia escondido na cabana muita gente, entre elas bruxos e alguns líderes políticos e revolucionários que lutavam contra a tirania de Kan. Até o momento da chegada do casal ninguém fora descoberto. Encantado com o local, Julius tentara sair do gramado e adentrar na floresta, mas uma barreira invisível não permitia a sua passagem. Após algumas tentativas frustradas, voltou correndo para a cabana para contar o fenômeno à sua companheira, que custou um pouco a entender o que seu amado queria comunicar. Tão logo captou a mensagem, saiu com Julius para ver in loco o tal paredão invisível.
- Marcolino, acorda, porra! Vou despejar um balde de água fria nessa cara sem vergonha. Caraca, esse cara dorme como uma pedra em plena tarde de sol quente...
Acordei bem zonzo. Não sabia onde estava e as imagens do sonho ainda perpassavam minha mente. Tentei contar para o Rocha o que estava delirando nos braços de Morfeu, mas as cenas descritas estavam fora de ordem e ele começou a ficar impaciente, pois queria ir para o Bar do Dudu tomar uma gelada e dar umas tacadas na isnuca.
- Pô cara, em vez de sonhar com umas gatinhas gostosas te rodeando, pedindo beijinhos e uns amassos, tu vai viajar lá pela Idade Média, sei lá em que porra de país, cercado de bruxas, magos, cavaleiros e facínoras. Isso é que dá fumar e ouvir Wishbone Ash...
Rio de Janeiro início dos anos 2000 e Petrópolis dez de 2020.
Foto: Marcos Alexandre, Petrópolis, Bonfim, Canto da Mãe D'Água, junho de 2018.

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