A tarde estava escaldante, com aquele sol de rachar telha na caatinga. Ficava irrequieto com o calor, e o jeito era refrescar as ideias. Peguei a nega japa e subi a ladeira da João Caetano na intenção de matar a sede com uns goles gelados de Bohemia. Fui no totozinho, sem nenhuma pressa, deliciando-me com o vento na face. Cheguei na birosca do Joaquim e constatei que a rapaziada estava todinha no pedaço. Deixei a nega no descanso lateral, para evitar o esforço de colocá-la no central, junto ao paredão da fábrica de velas, bem onde batia uma sombrinha providencial. Entrei devagar, ainda espreguiçando-me, e cumprimentei a galera com um salve geral. Rocha pediu mais um copo e foi logo me servindo do néctar de cevada.
— E aí, cara! Que calor possante, parece até o motor da 750 Four depois de rodar uma hora no pau.
Sorvi o copo americano em um só gole. Enxuguei a boca no dorso da mão esquerda e soltei:
— Também não exagera.
Rocha pediu outra garrafa e serviu-me mais uma dose enquanto falava:
— A gente tá pensando em descer a serra e esticar até Ipanema.
Disparei, sem ao menos refletir sobre a viagem:
— Puta-qui-pariu! Aí não vai prestar... Encarar essa lua até lá...
Rocha não deu ouvidos para a minha lamúria e disse calmamente, em alto e bom som:
— A parada é mergulhar naquela praia cheia de cocotas, refrescar as ideias apreciando o belo visual.
Daí, comecei a organizar o pensamento, após esvaziar o segundo copo.
— Caralho! O calor afetou tua mufa. É muito chão debaixo dessa lua escaldante...
Rocha não estava nem aí para a minha explanação e continuou sua fala como se não tivesse ouvido nada.
— A gente tá matando a cerva e indo pra estrada.
Percorri a espelunca com o olhar. Paulo Henrique (PH), Xerife, Loirinho e Lobicha, estavam disputando uma melhor de três na sinuquinha. Era a nega. Perguntei ao PH se aquilo era papo reto. Concentrado na tacada, só balançou a cabeça assertivamente. Fui até a porta, olhei pra lua através do meu Ray-Ban clássico e pensei com os meus botões: “será?”.
O que iria fazer? Voltei ao balcão, servi-me de mais uma dose da gelada e continuei calado. Na cabeça, os pensamentos fervilhavam. PH e Lobicha venceram a peleja. A despesa correu por conta de Xerife e Loirinho. Rocha acendeu um Hollywood e saiu da birosca já com o casco enfiado na cabeça. Ligou sua 500 Four explodindo potência no ar. PH se alojou na garupa enquanto ajeitava o capacete. Ele estava sem a sua CB 400, pois tinha derrapado dias antes na Petrópolis-Teresópolis e danificado um pouco a máquina. Como ele não gostava de ratoeira, e sim de motocicleta, mandou a belezura para ser restaurada. A máquina era igual à minha, made in Japan, ano 81, só que personalizada, toda em amarelo gema de ovo. A minha nega tinha a pintura original, com finas faixas vermelhas. Loirinho e Xerife estavam na 750 Four que pertencia ao irmão do cowboy. A máquina estava meio caída, mas o ronco parecia querer dizer que o motor estava no ponto. Lobicha acendeu uma cigarrilha no cigarro do Rocha e perguntou se eu não queria ir com ele na viúva negra.
— Se tu não quiser fazer a nega pegar maresia, vem comigo.
Respondi que iria na minha CB.
— Tenho que passar em casa para pegar minha jaqueta e o coco.
Com uma risadinha sarcástica no canto da boca, mandou:
— Tá amarelando... Não quer encarar a minha RD 350 na garupa.
Mandei na lata:
— Qualé! Então deixa essa ratoeira na casa do Rocha e vem comigo na nega.
Respondeu de supetão, caindo na gargalhada e quicando a sua assassina:
— No cu, pardal! Tu sabe que não ando de carona.
Descemos a João Caetano e fomos direto até a minha casa, na Casimiro de Abreu, pegar meus assessórios. Jaqueta e casco colocados, partimos para abastecermos no posto Shell próximo à entrada do Thouzet. Com os tanques cheios e os pneus calibrados, saímos de Petrópolis pelo Quitandinha.
Descemos a serra no totozinho, aproveitando o belo dia e o frescor da mata. Menos Lobicha, que ia à frente como um doido varrido. O cara só gostava de andar abrindo o gás. Nessa época não existia a Linha Vermelha. O acesso mais rápido para chegar ao Rio era pela Av. Brasil. O louco nos aguardava embaixo da sombra de uma árvore no início da alça da Washington Luiz com a Brasil, bem na altura da Penha. Quando paramos, foi encarnando na rapaziada.
— Vocês são um bando de lesmas e tartarugas. Estou aqui há tanto tempo que o motor da ratoeira já esfriou.
Conversa fiada. A RD ainda estava estalando. Aproveitamos o momento para dar uma esticada nas pernas. Não é recomendável rodar mais de 100 quilômetros em motocicletas sem uma pausa. Mas o calor era infernal, mesmo na sombra, gerando aquela sensação térmica desagradável, como se estivéssemos numa sauna elétrica. A pausa não durou mais do que 10 minutos.
Logo ao pegar a Brasil Rocha, levou uma bela fechada de um caminhoneiro que dirigia uma carreta jacaré Scania 111 como se fosse o José Carlos Pace. A bicha estava vazia e da carroceria voavam pequenos pedaços de madeira e pedras, por isso estávamos com dificuldade para realizar a ultrapassagem. O piloto parecia ir a mais de 90 quilômetros por hora. Lobicha já tinha passado de passagem pelo enlouquecido. Eu fiquei na retaguarda para ver o que iria acontecer. Meu sexto sentido dizia que ia dar merda. Xerife desferiu potência na 750, e passou. Rocha foi na cola, mas antes de chegar ao cavalo, o piloto da carreta deu uma quebra de asa. Caralho! Por um triz Rocha e PH não foram fazer uma visita a São Pedro. A 500 quase pega na mureta da pista central. Rocha deixou a carreta seguir e se posicionou atrás da minha 400. Nisso, PH mete a mão na cintura e saca a sua Bereta. O relato que segue foi como ele contou o trampo:
— Emparelha na traseira dele pela esquerda, mas deixa um metro de distância da lateral.
Rocha seguiu as instruções. Quando se posicionou do jeito que PH pediu, três pipocos foram parar bem no retrovisor do ensandecido. Desaceleramos quase que simultaneamente enquanto o caminhoneiro travava nos freios. O cheiro de borracha queimada se espalhou pelo ar, e a carroceria ziguezagueava na nossa frente. Quando o doido conseguiu parar a jamanta nós nos aproximamos devagar, e PH ainda com a Bereta em punho mandou mais dois pipocos no último pneu esquerdo do terceiro eixo. Passamos devagarinho pelo caminhoneiro, que estava pálido qual uma vela de cera, com uma expressão de pavor estampada no rosto. Daí, despejamos potência nos aceleradores e fomos no encalço de Lobicha e Xerife. Após alcançá-los, depois de muitas buzinadas e piscadas de farol, encostamos em um desvio e contamos a peripécia. Em reunião, seguida de uma rápida votação, resolvemos abortar o passeio e retornar para a Cidade Imperial.
Ao chegarmos na serra, fomos direto para o bar do Vicente, que ficava quase que defronte à casa do Xerife. Antes de tudo, matamos a sede com grandes goles de Bohemia, daí iniciamos a reconstituição do fracassado passeio. Estávamos apreensivos e com os nervos à flor da pele, mas após o suco de cevada e umas branquinhas, fomos relaxando e achando graça da desgraça. Só não rimos mais do que quando o Rocha, Bolinho de Queijo, PH e Xerife foram vender Bohemias num Carnaval em Cabo Frio.
Rocha descolou um dojão quatro portas com um cliente que ele prestava serviços de mecânica. A rapaziada estava lisa e a festa da folia parecia que ia ser um fiasco. Eis que Rocha descola a caranga para viajar no Carnaval. Só tinha um problema: grana para encher o tanque para ir e voltar do balneário. Detalhe: ainda tinham que comprar as cervejas, que seriam vendidas a preço de ouro na Praia do Peró, paraíso dos surfistas. Planejamento esquematizado, sendo que a compra das ampolas não deixou grana suficiente para abastecer a banheira. A solução foi colocar meio tanque de gasolina e meio de querosene, que era bem mais em conta. Estávamos em plena alta do petróleo, e o preço dos combustíveis tinha disparado. A ideia do Rocha era levantar um bom trocado na venda das cervejas. Declinei desse passeio, pois nunca fui fã de praia lotada e ainda estava com aquela sensação esquisita de desaprovação da atitude de PH naquela viagem frustrante à Ipanema. Sempre tive muito admiração por caminhoneiros. Na verdade, se não tivesse estudado e me formado em jornalismo, a profissão que eu iria escolher seria dirigir caminhões. Adoro essas máquinas incríveis que transportam o Brasil nas costas. Preferi ficar na serra curtindo as cachoeiras.
Na estratégia do idealizador, a viagem teria que ocorrer após as 22 horas, para evitar engarrafamentos e fiscalização da Polícia Rodoviária, uma vez que o malão do Dodge estava repleto de cascos do néctar dos faraós, empilhados deitados uns sobre os outros, separados apenas por folhas de jornal. Devia ter, no mínimo, umas 180 garrafas. Por isso, a estratégia previa uma direção macia, bem devagar, para evitar danos à preciosa carga.
Assim foi feito. Partiram na sexta, por volta das 23 horas. Desceram pela serra velha com tranquilidade, não ultrapassando os 30 quilômetros, pois o fundo do carro arrastava em algumas curvas. Na Rio-Magé, foram parados ao passarem pelo posto da PRF. O inspetor se aproximou da janela do motorista e gentilmente pediu os documentos da banheira. Rocha solicitou ao Xerife que os pegasse no porta-luvas, saiu do carro portando a papelada que logo entregou ao policial. Feita a conferência, a autoridade sacou um bloco e começou a anotar as infrações. Não eram poucas. Passados uns enervantes 10 minutos, o inspetor fez a dedução:
— Vejo que vocês estão indo para Cabo Frio.
Rocha, espirituoso como de costume, disse:
— Caramba! O senhor é vidente.
O policial veio com essa:
— É fácil a dedução, meu jovem, esse Dodge com quatro boias só pode estar indo para a praia. Como a placa é de Petrópolis, e petropolitano adora Cabo Frio, fiz a minha aposta.
Antes que ele terminasse a frase, os quatro rapazes já caíram na gargalhada. Rocha até se encostou no paralama dianteiro esquerdo, para não desabar de tanto rir. Até o policial sisudo deu um meio sorriso. O motivo de tanta galhofa foi a constatação do estado dos quatro pneus estarem tão lisos que mais pareciam aquelas boias improvisadas com câmaras de ar. A descontração tomou conta do ambiente. Rocha relatou o plano da galera e ainda deixou meia dúzia de garrafas com o inspetor, que desistiu das multas e ainda recomendou na despedida:
— Evitem as pontas de cigarro, pois podem estourar as boias.
Mais gargalhadas e acenos na partida. Em Cabo Frio, o planejamento não funcionou tão bem. Beberam mais do que venderam e tiveram que abreviar o retorno, pois a grana para encher o tanque da banheira era violenta. Chegaram na serra quase que no vapor do combustível. Mas nunca mais esqueceram a zoada do inspetor. Quando viam um pneu careca rodando em algum veículo perguntavam para o condutor: você está indo para a praia?
Ainda teve o passeio nas férias de final de ano para a Praia do Forte, também em Cabo Frio. Estávamos a pé naquela noite, e já tínhamos tomado nossa gelada no Café Rio Branco, um dos poucos a permanecer abertos até a madrugada na Cidade Imperial. Eu e Rocha voltávamos para casa quando, na altura da Padaria Petrópolis, nos deparamos com um belo TL vermelho, motor ligado, lanternas acessas e sem ninguém dentro. Rocha foi logo bolando um novo passeio.
— Marcolino, vamos passar o final de semana em Cabo Frio?
Argumentei que não tinha um puto no bolso. Como iríamos fazer para viajar? Ele apontou para o carro.
— Tá louco, cara! Isso vai dar merda.
Resoluto, Rocha entrou no TL, assumiu a direção e saiu em disparada. Fiquei parado ali boquiaberto, com o queixo quase no chão. Depois me contou que dali foi até em casa pegar uma muda de roupas, um pixulé e ainda convidou o PH para a empreitada, que topou de primeira. Saíram numa sexta à noite e retornaram na segunda, deixando o TL no mesmo lugar que encontraram, lavado e com 1/4 de gasolina, conforme o mostrador indicava na hora do suposto empréstimo. Virou até notícia em um dos jornais serranos: “Carro roubado é deixado no mesmo local do crime, lavado e polido”. Essa façanha ficou um bom tempo sendo recontada pelos dois aventureiros, e eu sempre dando ouvidos àquelas suas lembranças das peripécias no balneário fluminense.
Petrópolis, 31/01/2020.
Foto: Bárbara Rudge, rua Ceará, Praça da Bandeira, Mecânica Salvatore Ferri, julho 2018.

Comentários
Postar um comentário