A chuva caía vagarosamente e o frio era intenso. Mesmo assim coloquei meu casaco de náilon, apertei os coturnos, enfiei meu gorro de lã na cabeça e parti rumo à ladeira dos ratos, onde as dores rolavam sobre os corações petrificados. A ladeira era íngreme, e o meu passo apertado esquentava o corpo. O pensamento estava voltado para a pesarosa notícia. Nada ao redor era nítido, a garoa envolvia tudo. Finalmente cheguei ao meu destino; bem, ainda faltava subir a escadaria da casa do Rocha. Galgados os últimos degraus, fui esmurrando a porta. Ele vinha meio tonto, insinuações nítidas dos traçados que esquentavam nossas goelas sedentas.
— Porra! Isso é hora de pintar por aqui! Oito da matina!!!
Fui logo entrando e soltando aos borbotões as últimas novas. Tínhamos que preparar uma peça para o Bacalhau, pois o seu Dudu, diretor Social do Grêmio Amizade, estava fechando negócio com o safado.
Bacalhau era um pé-de-chinelo que tinha uns caixotes com alto falantes, amplificadores montados no fundo do quintal, umas lâmpadas GE coloridas e se achava o rei do rock and roll, querendo nos destronar do Grêmio, onde colocávamos o extasiante som das noitadas de domingo.
Rocha esbravejou uma dezena de impropérios. Sentamos na sua desalinhada cama, onde sob o estrado estava o nosso fortificante das ideias, o bom e velho conhaque. Após a segunda dose cavalar, as palavras surgiram como uivos.
— Aquele fedelho desgraçado vai ver com que está se metendo. Vou quebrar todos os ossos daquele muquirana. Ninguém ligava para aquela espelunca. Foi só baixarmos acampamento para esses sacanas aparecerem, querendo deitar na sopa. Quanto ele está pedindo pela hora de som?
Respondi que era a metade do nosso preço, enquanto minha mente repassava velozmente os deliciosos momentos do nosso reinado. Tardes frias de inverno, batidas de limão, uísque e cervejinha. Tudo grátis para os talentosos sonorizadores. E aquele par de coxas de Maria Lúcia, vinte e oito anos, dez a mais do que eu, toda lânguida e desenfreadamente a fim de um aperto violento. Bastava ela entrar no Grêmio para que eu largasse os controles dos nossos amplificadores aos cuidados do Rocha. Sentávamos em uma mesa no fundo do salão, dando início ao colóquio. Mãos descendo decote abaixo, pés enroscadinhos, beijos que explodiam em fagulhas mil, inflamando o corpo inteiro, evidente que com a ajuda das batidas, que mais pareciam trombadas de tanta cachaça.
De repente, Rocha dá uma porrada no meu peito e pergunta se eu estava no mundo da lua. Por lá não andei, mas, se fosse como as noitadas de domingo, até que gostaria de morar num lugar desses!
— Temos de aprontar algo para o Bacalhau! Algo que o faça sempre lembrar com quem se meteu!
Saímos debaixo da tormenta de São Pedro. O velho devia estar do nosso lado, pois chorava igual bezerro desmamado. Fomos ao bar do seu Dudu. Este, ao nos ver chegar, foi logo preparando dois traçados de pinga com cinzano.
— Meninos, os tacos estão desocupados e a mesa foi calçada. A caçapa da esquerda não vai mais engolir bola de pato-rouco.
Com a amabilidade do velho, já havia esquecido o que viera fazer ali. Esquecido não é bem o termo, eu nem sabia o que estava fazendo. Segui Rocha debaixo de uma chuva torrencial, sem trocar uma palavra, andando com as mãos para trás, lado-a-lado, até que estávamos dentro do bar, sem saber bem como. Despertei quando Rocha, enfim, abriu a boca:
— Seu Dudu, não viemos jogar sinuca e nem conversa fora. Estamos interessados nos boatos de que o Grêmio vai colocar outra equipe de som. Isso é conversa pra boi dormir ou é papo reto?
Os olhos de seu Dudu diminuíram mais ainda por trás dos óculos fundo-de-garrafa-verde-sai-da-frente. O velho pigarreava e falava devagar. Explicava que nós não havíamos assinado nenhum contrato e que o nosso preço estava um pouco alto.
— Não assinamos contrato porque o senhor ficava amarrado sempre que tocávamos no assunto. Além do mais, palavra de homem é negócio fechado! Nosso preço é alto porque nossa aparelhagem é de primeira. Não trabalhamos com caixotes de bacalhau e alto-falantes de radinho de pilha!
Seu Dudu argumentava que a barulheira de nossas músicas não necessitava de boa aparelhagem. O que interessava ao Grêmio era o lucro. O papo se estendeu, mas a decisão do coroa era irredutível. Resolvemos sair pra outra. Antes de partirmos, entornamos nossos traçados e pedimos duas cervas, pra tirar o ranço. A conta ficou encalhada na hospitalidade do velhinho. O frio intenso e as Bohemias geladas endureceram nossas almas, mais do que penadas, sacaneadas. Dali rumamos pra casa do Lourinho em busca do trinta e oito cano longo. Na house dele sempre havia uma pinguinha à nossa espera, daquelas de levantar pemba de setentão! O resto da semana foi chuva, aporrinhação e horas contadas nos dedos até a chegada do domingo, que pintou cinzento, prevendo alguma desgraça. O aguaceiro estava se guardando para, na hora H, desabar em lágrimas torrenciais. Antes do almoço já estávamos tomando o nosso tradicional conhaque no bar do Quim, que ficava a uns 50 metros do Grêmio. Almoçamos juntos, na casa do Rocha, uns pedaços de linguiça de Juiz de Fora, arroz e uma farofinha torrada na manteiga. Comidinha caseira, preparada pela avó dele, para enfrentar a empreitada da noite. Após a boia, fomos ouvir Humble Pie e lubrificar, pela décima-quinta vez, a arma. Ao entardecer, mais uns golinhos de conhaque... Finalmente as trevas desceram, acompanhadas pelo vento gélido das montanhas. Ficamos em frente ao Grêmio, vendo os assíduos frequentadores chegarem. Taninha, papai trazia de carro. Glória vinha com Rosa, após apertarem um baseado com Arnaldo e Lobão. Neide, cada vez mais boazuda, com aquele pentelho do Cláudio. De repente, eis que ela surge, toda de negro, com seu andar leve e cadenciado. Rocha põe a mão no meu braço e aperta com força. Não dá uma palavra. Suas narinas se dilatavam e contraíam num ritmo ofegante. Vislumbro Maria Lúcia subindo as escadas, com sua calma de mulher feita. Todo agitado, deixo escapar:
— Vamos logo dar um fim nesta joça!
Rocha não dá um pio, continua segurando meu braço e fumando seu infinito Continental sem filtro. Passados quarenta minutos, aproximadamente, com o som já quente vociferou:
— Vamos!
Entramos no pinote, empurrando o porteiro e derrubando os casais enamorados. Em poucos segundos estávamos no meio do salão. Rocha sacou o trinta e oito e mandou chumbo para o teto, de onde caíam lascas do emboço. Três tiros para sobrar azeitona em quem se mete onde não é chamado. Foi um corre-corre dos diabos, seguido de gritos e princípio de choro. Abriu-se uma clareira no centro do salão e o som desapareceu. Só se ouvia a voz de Rocha.
— Bacalhau fedorento, tira essa merda de som daqui! Do contrário vai virar presunto! No meu pedaço não há lugar pra safado!
Ninguém deu um ai. Rocha segurava a arma com as duas mãos e o cão puxado, mira voltada bem para o meio da testa do Bacalhau, que de branco ficou roxo. O cara não conseguia falar e tremia qual vara verde. A rapaziada que estava perto da saída deu nas canelas. Quem estava perto do bar pulou para trás do balcão. Os que andavam pelo fundo do salão, praticando o ritual da mão boba, saíram em disparada, tesos e mudos, pela porta dos fundos. Em poucos minutos o Grêmio estava vazio. Só eu, Rocha, Bacalhau e seus assistentes permaneceram no recinto. Caminhei até o palco e comecei a retirar os fios das caixas de som.
— Bacalhau, você ouviu bem?! É para tirar tudo, já... Voando!
Como quem acordasse de um sonho, Bacalhau e seus eficazes secretários desmontaram a aparelhagem em pouco tempo. Se houvesse concurso para tal modalidade, teriam vencido com ampla vantagem. Terminada a sensacional operação limpeza, Rocha mandou:
— Não quero ver mais tua cara por aqui. Vai botar esse som de radinho de pilha em outras paragens. O pedaço é nosso e não temos lugar pra você e seus puxa-sacos.
Após o agradável monólogo demos um pulo no bar do diretor.
— Seu Dudu, o rapaz terminou o som no melhor do baile. Ele não é de confiança. Acho melhor o senhor assinar um contrato conosco, no preto e no branco. Nosso som nunca falha e tem garantia de trinta e oito horas. Ouviu bem, seu Dudu, trinta e oito horas...
E assim foi feito. O velho tremendo de alegria nos contratou para colocarmos som durante seis meses no Grêmio. Pena que não tivemos tempo para agradecê-lo. Na semana seguinte à assinatura do contrato, pediu demissão do cargo de diretor social e, em 15, dias vendeu o bar, mudando sem deixar o novo endereço.
Janeiro de 1980.
Foto: Bárbara Rudge, Teresópolis, Mirante da Colina, agosto 2019.

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