O chamado


  Nair saiu da Glória sem destino. Sentia uma vontade incontrolável de ir para o Grajaú, sem saber o porquê. Pegou o ônibus e quando deu por si já estava no ponto final. Saltou e andou a esmo, até entrar em uma rua arborizada, que lembrava as ruas da sua cidade natal, Petrópolis. Estava tentando descobrir como fora parar naquele lugar, totalmente desconhecido, quando surgiu uma menina lourinha, com cabelos cacheados, aparentando ter uns 7 anos, que lhe pegou pela mão e lhe foi guiando apressada para uma casa que ficava no final da rua sem saída.

Ao chegarem no portão a menina apontou para a varanda. Nair adentrou no jardim batendo palmas, já que não havia localizado o interruptor da campainha. Foi intensificando as batidas enquanto chamava “ô de casa”. Avistou um homem atravessando a sala em passadas largas, parecia estar atordoado. Ele abriu a porta dizendo que a sua mulher passava muito mal, pois não conseguia respirar direito.

Entrou seguindo o senhor, e foram direto para o quarto do casal. A mulher agonizava na cama com uma fisionomia de desespero, com os olhos esbugalhados e a pele em tom cadavérico. Sentou-se ao lado da moribunda e fez um rápido exame da situação. Percebeu que o momento era grave. Pediu ao homem para providenciar água quente e umas toalhas. Na verdade, ela queria ficar a sós com a paciente. O marido se retirou apressado para atender às solicitações. 

Quando se encontrava em particular com a mulher, falou, como era de costume, com sua voz firme, porém carinhosa, para a paciente manter a calma e relaxar, pois ela estava ali para salvar a sua vida. A moribunda arfava com dificuldade, mas após ouvir as palavras de Nair, parecia acalmar-se, já que sua respiração era menos ofegante. Pegou com suavidade a cabeça da enferma e a afastou um pouco da cabeceira, mantendo-a curvada para frente sobre o seu ombro direito. Sentiu uma nova ligeira melhora.

Seu próximo passo foi, com muito cuidado, deitar a paciente de bruços na beirada da cama, que era alta, de modo a manter a cabeça para fora do colchão. Reuniu todas as suas forças e desferiu um murro bem no meio das costas da moribunda. Sentiu-a soluçar. Imediatamente deu outra pancada. A mulher começou a vomitar um líquido pegajoso, de coloração esverdeada. Logo uma grande poça se formou no tapete que ficava ao lado da cama.

A enferma começou a tossir enquanto Nair a reposicionava encostada sobre quatro travesseiros na cabeceira. Chamou pelo homem: “senhor, senhor!” Ele logo apareceu trazendo consigo uma bacia de louça com água quente e duas toalhas de rosto brancas. Nair molhou uma delas e começou a limpar suavemente a face da paciente. A cor já retornava à tez. O homem começou a agradecer com as mãos, postas em forma de oração. Pouco depois, era a mulher que balbuciava um “muito obrigada”.

Depois de limpo o tapete, Nair pediu para o homem preparar um chá preto e trazê-lo quente. Perguntou onde a esposa guardava suas camisolas. Trocou-a e penteou com carinho os seus longos cabelos castanhos claros. Após bebericar o chá, a paciente apresentava uma sensível melhora.

O casal, intrigado, queria saber como ela havia chegado até eles. Ela contou que fora a filha deles. Entreolharam-se espantados e quase disseram em uníssono que não tinham filhos. Nair explicou que era uma menina nova, aparentando ter uns 6 ou 7 anos, de cabelos louros e cacheados. Eles falaram que moravam há mais de 20 anos naquela rua e que atualmente não havia nenhuma criança que se encaixasse naquela descrição.

Daí, Nair começou a matutar sobre o impulso que a fez sair da Glória e ir parar naquele lugar. Suas ações vieram por pura intuição. Era mais uma vez a sua voz interior lhe chamando. Percebeu num piscar de olhos que não adiantava tentar explicar os fatos para o casal, pois eles já haviam passado por uma terrível experiência. Conversou um pouco mais sobre amenidades e se despediu após tomar uma xícara de chá com biscoitos caseiros, que por sinal estavam deliciosos. 

Atravessou o jardim e, chegando ao portão, deparou-se com a menina sentada na grama, próximo à saída para a rua. A pequena lhe fitou com um belo sorriso entre as bochechas rosadas. Ao se aproximar para fazer uma pergunta à criança, percebeu que a mesma desaparecera subitamente. Um arrepio percorreu sua espinha dorsal e fez seu corpo inteiro tremer, literalmente, da cabeça aos pés. Passado o susto, recompôs-se, atravessou o portão, e percorreu a rua até o início, sem saber como refez o caminho de volta até o ponto final do 434. Na viagem de regresso foi recontando mentalmente os detalhes até o destino final, a casa de sua tia Amélia.

Rio, 21/10/96 e 18/01/2020.

Foto: Marcos Alexandre, início dos anos 1980.


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