Malandro, mas nem tanto


    
    O grito da freada era inconfundível. Do fundo do bar, focalizei a entrada de Francisco com seu sorriso contagiante. Seus primeiros passos foram direcionados ao balcão direito de quem entrava no Café Rio Branco, em forma de U. Como de costume, pedia uma dose de Red Label sem gelo. Sorvido o primeiro gole, dirigiu-se para a nossa mesa e deu um aperto de mão no Rocha. Quem olhasse para a porta do boteco, veria um fusquinha branco, rebaixado, com faroletes de neblina e uma enorme antena de plástico azul.

Quando não havia nada pra se fazer, o que era uma constante, eu ia com o Rocha para o Café Rio Branco, na esperança de encontrar Francisco, aguçar os ouvidos e escutar as histórias mirabolantes do malandro. Francisco ganhava a vida na esperteza. Era o contrabandista mais conhecido e procurado das redondezas. Vendia cigarros americanos, uísque escocês e relógios suíços. Mas não era só o contrabando que explorava. Para a maioria da população, era conhecido como Pai Francisco. Possuía um respeitado terreiro de umbanda. Sua casa estava sempre repleta às terças e quintas, quando dava consultas através da voz do Senhor Barão, inspirado no Café onde nos encontrávamos. Cada consulta era vinte paus e o resto se resumia a tremedeiras e algumas palavras desconexas. Depois, vinha a calmaria e os conselhos:

— Mia fia, o seu homi num gosd’ocê. Pr'ocê aconseio mudá diamô.

Assim é que todas as menininhas andavam na mão de Pai Francisco. Seu poder de persuasão era infalível. Certa vez ocorreu que uma de suas caboclas ficou de barriga. Moça de família distinta, muito tímida e religiosa, nem namorado possuía; coisa danada para tirar a fé, dizia seu pai, o velho Raimundo. De repente, aquela barrigona. Seu Raimundo procurou Pai Francisco para as devidas explicações. Mas acabou manso, qual carneirinho de presépio, ouvindo o conselho do santo homem:

— A menina é uma das escolhidas de Exu das Sete Almas. Ela merece todo o nosso respeito e admiração. Vou tratar do primogênito como se fosse meu filho, meu próprio filho...

Raimundo ficou tão garboso que mandou preparar uma festa em homenagem ao Exu. Nós, como bons espiritualistas, comparecemos à homenagem do futuro neto do velho, o terceiro filho de Pai Francisco, pelas divinas obras dos espíritos.

Volta e meia Francisco tinha que interromper os seus bate-papos e se esconder atrás do balcão. Isto ocorria toda vez que avistava um de seus filhos entrando no bar. Às vezes passava horas sentado no chão, ao lado de engradados de refrigerantes e cerveja, à espera de que seus discípulos fossem para casa, após encherem a cara de cachaça.

— Vou dar uns conselhos aos meus filhos, para não tragarem tanta cana. Do jeito que a coisa vai, qualquer dia desses terei que dormir debaixo do balcão.

Mas essas emoções eram coisas insignificantes perto da aventura em que se meteu o pobre Pai Francisco. Tudo começou numa festa de formatura. A turma dos formandos em Direito da Universidade Católica de Petrópolis dava um baile no Hotel Quitandinha. Foi lá que Francisco deu os primeiros passos para o inesperado. Antes de irmos para o evento, paramos, como de costume, no Café Rio Branco e emborcamos no conhaque. De astral elevado e sorriso nos lábios, partimos para a noitada, que prometia ser agradável. Éramos sete marmanjos dentro do fusquinha, até o chiqueirinho estava ocupado. Quando chegamos, já foi um desastre: os ternos estavam amarrotados, qual trombada de trem. O meu era um horror. Roupa emprestada quase nunca cai bem. A minha pertencia a um jovem com complexão física de um Jô Soares, sendo que na época eu pesava, aproximadamente, 60 quilos. A calça toda enrugada, mais parecendo uma saia de pregas, e o paletó dançando a sinfonia macabra.   

As meninas desatavam em sonoras gargalhadas. Tinha a impressão de que elas se urinavam de tanto rir. Dentro do salão, a turma debandava. Cada um ia agitar o seu lance. Bebia todos os meus trocados e fui, desolado, sentar-me nas escadarias de mármore que davam acesso ao salão, sonhando com a chegada da gueixa encantada. Estava na melhor das imagens, quando Francisco surgiu no hall com uma estonteante garota. Pensei que ele trazia a formosura para os meus braços, carentes de afeto e sedentos de prazer. Mera ilusão! O desgraçado passou por mim e fingiu que não me viu. Fiquei de longe vendo o malandro tratar a dama como se fosse um fidalgo. Sentaram no sofá central, ele mantendo uma boa distância da jovem, numa atitude que me deixou pasmado. Normalmente, o danado mal se dava ao trabalho de conhecer melhor uma pequena, partia logo para os finalmentes. Com esta, tudo havia mudado. Pensei até que o safado estivesse com dor de barriga. Daquelas brabas, que a gente vê tudo preto, não ouve nada e só tem um pensamento em mente: sair disparado para o primeiro sanitário à vista. Francisco encarava aquele rostinho moreno de expressivos olhos amendoados, a piscarem em movimentos leves e compassados. A boquinha carmim movia-se lentamente, deixando à mostra os alvos dentes. O cabelo liso, puxado para trás, num rabo de cavalo. Penteado simples, mas de uma beleza contagiante. O tempo escorria lentamente, e nem um beijo, nada de afagar os negros cabelos, nenhum movimento que merecesse reprovação. Parecia um nobre a cortejar a donzela. Se o pai dela os visse, diria: “rapaz de boa família”. Passei duas vezes bem rente ao desgraçado e ele nem sequer pestanejou. O cara parecia estar envolvido em uma névoa espessa. Não fumou nem bebeu nada. Só papo e sorrisos.

Às primeiras palavras de encerramento da croneer do conjunto, a dama levantou e despediu-se graciosamente de Francisco, que lhe fez uma reverência muito elegante. Corri ao seu encontro e perguntei quem era o tesão.

— Isso não é mulher para você, garoto! Ela é uma coisa muito especial, filha de um empresário cheio da nota.

A conversa terminou aí. A turma veio cantando músicas pernósticas e fazendo um alarido ensurdecedor até chegarmos em casa. Francisco dirigia calmo, devagar, fumando o seu Dunhill, com um sorriso enigmático no canto da boca. Na semana seguinte, não apareceu no Café. Todos pensavam que estava doente. No seu terreiro não houve sessão na quinta-feira. Daí em diante, suas visitas ao Rio Branco diminuíram. Não contava mais suas histórias mirabolantes. Perdi até a motivação para sair nas noites gélidas.

Certo dia estava andando de bicicleta pela Avenida Quinze de Novembro, quando ouvi a voz do malandro:

— Psiu! Magrela, ôôôh magrela!

Iniciamos um bate-papo na calçada e fomos terminar num desses botecos de galeria. Após duas doses de uísque e a língua solta, confidenciou-me:

Sábado que vem vou ficar noivo. Sabe aquela garota linda, que estava comigo no baile da turma do Direito ano passado? Pois é! Estou pensando em casar...

Imaginem como fiquei! É, isso mesmo, aparvalhado. Como um cara salafrário, vigarista e sacana podia conquistar uma garota daquela? O miserável disse que não iria convidar ninguém da turma, pois poderiam dar vexame, como o Rui que, bêbado feito gambá, foi debruçar na pia do banheiro, numa dessas festinhas de quinze anos em casa de bacana, e arrancou azulejo, encanamento, torneira e o escambau. Depois chegou para a galera, com a cara mais limpa do mundo, e falou:

— Fiz merda! Derrubei a pia do banheiro. Fui me debruçar sobre ela para conferir o visual da cabeleira e veio tudo abaixo.

Foi uma debandada geral, um atrás do outro, em fila indiana. Tá certo não convidar o Rui, mas o resto da patota sabe se comportar. Mereciam ao menos uma participação.

E lá foi o sacana todo bobo para o jantar de noivado. Vou abrir um parêntese para explicar as artimanhas do artista no decorrer de sua aventura. Francisco se fez passar por filho de fazendeiro. Estaria em Petrópolis para cursar Engenharia. Sua farsa era perfeita, sendo comprovado pelas cartas que recebia do pai, capataz da Fazenda Pinheiral, em folhas e envelopes timbrados. O malandro ia curtindo um astral filhinho de papai. A propriedade, na qual seu pai labutava feito escravo, era a maior abastecedora de leite da Normandia Laticínios.

Lá estava ele, sábado à tarde, no Impala alugado, vidro fumê, pintura luzindo, azul pavão, pneus com banda branca, direção hidramática, rumo a Ipanema. Subiu lentamente a leve rampa da mansão dos Castro, na Prudente de Moraes e deixou o carro aos cuidados do porteiro. O Sr. Castro Júnior foi lhe abraçar com um alegre sorriso, de pai que casa a filha “bem ààà beça”. Após as formalidades das apresentações, onde o patife teve a oportunidade de manter um breve diálogo com os empresários mais bem sucedidos do Rio e de São Paulo, iniciou-se o banquete. Na verdade, nem chegou a ser servido. Bem na entrada, quando uma das copeiras avistou o safado, foi o caos.

— Pai Francisco! Saravá... Que a luz de Ogum nos alumiê...

E foi se postar ao pé do safadão, que ficou lívido, de olhos esbugalhados, lábios caídos e o corpo a tremer em espasmos. Ouviu-se então um retumbante "óóóóóh!", que ecoou sonoramente pelos recantos da residência. Bem, o resto vocês podem imaginar. Noivado desfeito, cochichos mil, sinais da Santa Cruz, toque-toque nas madeiras próximas, rios de lágrimas e sorrisos satisfeitos estampados na cara dos inimigos. O pobre Francisco se enfurnou no seu terreiro, tomou banhos de ervas, chamou os melhores pais-de-santo do estado, se benzeu durante semanas e finalmente confinou-se ao retiro espiritual, pelo menos para ver se arrancava o caboclo-do-pé-roxo de trás do seu astral. Mestre Vavá sentenciou:

— Meu filho, não esqueça nunca! Marginal com filha de industrial não vinga nem no esquimbau do barolete.

Janeiro de 1980.

Foto: Marcos Alexandre, tirada em um bar, próximo ao prédio do Ministério do Trabalho no Centro do Rio, em maio de 2009.

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