Assassino da lei


    
    O Opala virou a última curva, rente ao meio fio, com os pneus rangendo no asfalto poeirento. Sessenta metros adiante, uma freada brusca. As quatro portas se abrem quase que simultaneamente. Cinco homens pulam do carro. Tão entra pelo portão de madeira, atravessa o jardim em largas passadas e dispara a campainha. A velhinha vem se arrastando.

— Já vai! Já vai!!! Sempre com pressa. É o fim do mundo... O fim...

Tão fica estalando os dedos. É o melhor motorista da 5ª DP. Cara inteligente, malandro por natureza. Tornou-se homem da justa por ordem dos santos. Para vingar a chacina de seus pais e irmã, jurou ao Exu das Sete Caveiras, ou a quem quisesse ouvir, que acabaria com a vida dos assassinos de sua família. Meninote ainda, dezessete anos, mas com três mortes nas costas. Sua vida corria de vento em popa. Vadiagem, assalto à mão armada, cobrança de pedágio, jogo do bicho, venda de tóxicos e o que pintasse. Foi quando apareceu o Dr. Sandoval, Sandu (como eram conhecidos os antigos postos de emergência médica) para os chegados. O cognome lhe fora dado, pois era pra lá que despachava os que caíam em sua teia. Delegado eficiente, ardiloso, mutreteiro... Olhos apertados, de tanto mirar canela de safado, troncudo, baixinho e estourado. As unhas sempre lustrosas, cabelo aparado todo sábado, terno, chapéu e sapatos brancos, todos os artigos de primeira, ingleses e panamenhos. Um coldre no ombro, lugar do trinta e oito cano curto e um na cintura, pra o cano longo. Charuto Havana no canto da boca e voz enrolada nos rolos de fumaça.

O braço da lei caiu sobre Tão. O crioulo ficou na dura, resignado. Sem família, dentro ou fora da prisão dava na mesma. Sandu sentiu o drama do neguinho. Não era mole perder pai e mãe de uma só tacada. O crioulinho era esperto. Foi pego numa blitz de fim de semana, num boteco fedorento, no morro do Boréu. Estava sem documentos. Vadiagem, camburão... Epa!

— Dr. Sandoval! O cara é perigoso! Na ficha dele consta que é procurado pelas polícias de São Paulo e Minas.

— Enquadre o homem e pau nele. Vamos ver o que o bicho tem para cantar...

O que deixou Sandu acabrunhado foi ver o neguinho apanhar feito cão sem dono e não dar um pio. É cabra difícil de vacilar, refletiu o delegado. Homens como esse é de que a Polícia precisa. Resolveu convidar o pretinho para colaborar com a justa. Trabalho fácil, bastava guiar os meganhas pelos cafundós das favelas e recantos macabros, que Tão conhecia como ninguém. O negro relutou, mas o argumento do doutor era imbatível, e depois, debaixo de tanta bordoada e pau-de-arara, qualquer um concordaria...

— Você não quer ver mais órfãos chorando o fuzilamento dos pais, ou não quer?

Após a frase, a pancadaria cessou. Deixaram o homem numa sala confortável, com sofá, geladeira, televisão e um velho exemplar de jornal, onde estava a manchete: CHACINA NO FUBÁ. DA FAMÍLIA, SÓ RESTOU UM. Aquilo foi o bastante. No dia seguinte, quando o guarda abriu a porta e Sandu entrou, as primeiras palavras foram:

— Dotô, quando a gente começa?

Sua carreira como alcaguete foi mais rápida do que curso intensivo do Mobral. Ascenção meteórica. Por sua prestimosa ajuda, a Polícia trancafiou mais de quinze perigosos marginais, tudo isso em apenas onze meses. Como gratificação, foi escolhido para ser o chofer do Dr. Sandoval. Não era preciso farda e ainda ganhou um trezoitão cano longo de presente. E lá estava ele, naquela noite quente de novembro, parado na soleira da porta à espera do seu chefe.

— Dotô Sandoval tá durmindo? !? Acorda ele, temos uma emergência!

Lá foi a velhota se arrastando e choramingando casa adentro. Em dez minutos aparece o homem, enfiando o casaco, com a gravata fora do colarinho e a camisa desabotoada. O conjunto destoava do forte cheiro da colônia ‘Vitess’, que se espalhava pelo ar. Troca umas palavras com Tão e despede-se da velha. Avisa que só estará em casa pela madrugada. Só mesmo o amor de mãe se sujeita a isso. Sua mulher não suportou essas saídas noturnas, apressadas, misteriosas e agonizantes. Certa vez Sandoval saiu sem a mulher notar. Fora caçar marginais em Nova Iguaçu. Turma de viciados que estava aprontando umas e outras. No encontro, um dos fedelhos, cheio de coca nas ideias, mandou chumbo cerrado. Duas balas, calibre trinta e dois, alojaram-se na coxa esquerda do delegado, que fez ali mesmo o franco atirador ter moradia no quinto dos infernos. De volta ao lar, estendeu-se na cama, do jeito que chegou. Quando a mulher acordou e deu de cara com o marido estendido ao seu lado, sangrando aos pandarecos, botou a boca no trombone.

— Mataram o meu marido!!... Mataram o meu marido!!...

Esse foi o primeiro susto, com apenas um mês de casada. O pior foi quando dois procurados pela Federal, Serginho ‘Capeta’ e Mauro ‘Saci’, sequestraram o casal de filhos do Sandu. Pegaram as crianças no colégio com o velho papo: “Seu pai nos mandou, temos ordem de levá-los para casa.”

As crianças, já acostumadas com tipos mal encarados, aceitaram prontamente a ordem pensando que as figuras fossem subalternos de seu pai. Só que os malandros queriam se vingar do delegado, que havia matado o irmão de Capeta numa emboscada em Magé enquanto descarregava um contrabando de uísque do navio inglês Blue Rose. A mãe recebeu um lacônico bilhete informando que as crianças estariam bem se o Dr. Sandoval fosse até a tenda do Miro, na Chatuba, desarmado e sem comparsas.

— Troca boa, madama. Um safado por duas pombinhas...

A mulher, em prantos, tocou para o marido que, com a calma habitual, armou um esquema. Invadiu a casa da irmã do Capeta, sequestrando o sobrinho e a mãe. Deu uma passadinha pelo barraco dos pais de Saci para levar os velhos para um passeio. Colocou todos num confortável camburão e rumou para a Chatuba com mais de vinte meganhas. Na birosca do Miro tomou um café aguado, com rosca dura, e mandou um menino levar o recado para o Capeta: “estou com tua irmã e sobrinho, mais os pais de Mauro puxa-saco. Se as minhas crianças não estiverem aqui dentro de meia hora, mato todos.” O recado foi uma bomba. Serginho, que viu o irmão morrer de joelhos, implorando clemência, não pensou duas vezes.

— O filho da puta é capaz disso, Mauro. Ele mata com um sorriso estampado no canto da boca. A justiça não funciona pro desgraçado. Ele faz a própria lei. Miserável! Esse verme ainda me paga... Ah, se paga!!!

As crianças chegaram em casa sem um arranhão. Dali uma semana, os jornais noticiavam a morte de Capeta e Saci. Lá estava o sorriso no canto da boca, com o charuto rolando de um lado para o outro. Por causa dessa história, sua mulher pediu o desquite. Sandu não pôde fazer nada. As crianças acima de tudo. As coisas não iam bem. Cansado, beirando os sessenta, com a vista fraca, pés inchados, tonteira constante, falta de apetite... A velhice estava chegando... Foi por essa época que Tão apareceu. O crioulinho deu vida nova ao delegado. Malandrice, traquinagens, pilhérias, safadezas, porradas e xavecadas. Assim era o jogo dos dois. Pareciam pai e filho.

Com a separação da mulher e dos filhos, Sandoval se enfurnou com mais afinco no trabalho. Participava de todas as batidas e caçadas que o distrito se envolvia. Passou a ser conhecido como “Assassino da Lei”.

Mal Sandoval entrou no Opala, Tão arrancou cantando os pneus, rumo a Belfort Roxo. A missão era pegar um estuprador com mais de cinco acusações em um flagrante com uma menina de doze anos, além de um traficante que, ao ser surpreendido na sua boca de fumo, alvejou um policial na espinha, deixando-o paralítico. Em quarenta minutos chegaram ao destino, a DP de Belfort. Entregue a transferência, fria como os mandados de busca e apreensão que o Juiz Álvaro Antunes – colega de grupo escolar – assinava, os prisioneiros foram postos aos cuidados do Dr. Sandu.

Antes de pararem na delegacia, faltando uns quinhentos metros, ordenara a dois de seus homens que saltassem do carro. Com apenas dois detetives, pegou os prisioneiros e os colocou algemados no banco traseiro. Despediu-se do delegado de plantão e partiu. Logo adiante, embarcou de volta sua turma. Cinco quilômetros depois, nova paradinha. Amordaçou os marginais e os enfiou no porta-malas. Pegou seus homens de confiança e rumou para Itaguaí. Ao chegarem, no pequeno município, deram uma parada num boteco. Comeram uma galinha caipira com mandioca, regada à cerveja. O destino era a casa de seu Afonso, pai da menina seviciada.

As rodas do opalão deixavam profundos veios na areia fofa. O caminho era sinuoso e a noite estava qual breu. O carro ia devagar, ninguém falava. O rádio Px fora desligado. Soprava uma brisa agradável e o cheiro de mato indicava ar puro. O facho dos faróis iluminou o muro caiado de branco. A casinha de Afonso era modesta, mas bem cuidada. O velho trabalhou muitos anos como contínuo do pai de Sandoval, Dr. Ismael, promotor público. Duas tocadelas na buzina e o velho já estava do lado de fora. Sandu saiu do carro, seguido por Tão e mais um colega. Dois outros se postaram atrás do Opala, com as escopetas voltadas para a mala e um terceiro a abriu. Os dois marginais foram jogados no chão arenoso. O estuprador foi dependurado de cabeça para baixo numa mangueira. Afonso mandou socos e pontapés à vontade, ajudado por todos, até o desgraçado virar uma massa de sangue. Saciada a ira do velho, pegaram o trapo e jogaram de volta à mala. O traficante presenciou a cena petrificado. Esperneou um bocado antes de ser enfurnado no mesmo lugar. O sol despontava quando chegaram em Magé, onde Sandu tinha uma chácara, a ‘Toca do tatu’. Largaram os fardos por lá e foram para suas casas. Após uma batalha dessas, fazia bem tomar um bom e lento banho quente, deixando a água do chuveiro a gás cair massageando as costas.

Passadas 24 horas, ninguém notou a transferência fria que o juiz Álvaro expedira. Naquela época a Justiça andava atolada de processos contra os jovens comunistas. Sandoval não vacilou. Foi passar o fim de semana com Tão na ‘Toca do tatu’.

— Coitadinho dos hóspedes. Estão com sede. Vamos dar água pra eles, Tão!

Pegaram os pobres diabos, amarraram uma corda nos tornozelos e mergulharam num poço de água salobra. Quinze minutos, o bastante para matar a sede para sempre. Dizem que a morte por afogamento faz o indivíduo lembrar o passado, em rotação acelerada. Se isso for verdade, as duas peças dependuradas de cabeça para baixo não tinham muita coisa boa pra recordar antes de apagarem.

Sandoval estava de volta à maré de azar. E desta vez a rebordosa foi braba. O traficante, que comprou passagem pro além, era neto de um general cinco estrelas. O gorilão mandou vasculhar todas as delegacias e apurou parte dos acontecimentos, ou seja, só conseguiu arrancar que Sandu pegara o seu netinho em Belfort Roxo e... E só...

— Onde foi que você enfiou o meu neto?!

— General, o seu neto fugiu, juntamente com um estuprador.

— Não acredito! Ele não fugiria. Nunca foi pego e nem sabe o que é uma fuga.

— Mas general, ele foi induzido pelo outro. Ficou com medo de enfrentar os pais e se evadiu.

— Não acredito... Não acredito!!!

Sandu foi exonerado do cargo de delegado sem que ninguém descobrisse o mistério do netinho do general. Sem horário de trabalho, andou dando uma mãozinha aos seus colegas. Ajudava acariciar alguns indivíduos e marcava encontro com papai do céu para outros. Até que tirou licença definitiva, não se sabe se com São Pedro ou com Nosferatu. No enterro do Dr. Sandoval Pires de Alcântara, estavam presentes Tão e cinco companheiros que ganhavam a vida vendendo passagens para outros mundos. Para os filhos que ficaram, a história que contam é de que seu pai foi apenas um policial medíocre.

Rio, 1980.

Foto: Bárbara Rudge, passeio ao Canto da Mãe D'Água, no Bonfim, Petrópolis em junho de 2018.

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